Casos de vestidos | Elisa Andrade Buzzo | Digestivo Cultural

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COLUNAS

Quinta-feira, 11/8/2022
Casos de vestidos
Elisa Andrade Buzzo
+ de 6900 Acessos

Toda a mulher e toda a gente deve ter, pois sim, histórias de vestidos, vestidos de estimação ou alguma relação obscura ou vívida, seja com vestidos seus, de amores próximos, de vitrinas (ou sites), ou ainda daqueles tantos, assim célebres ou meio esquecidos, de estrelas longínquas da ópera ou do cinema.

Vestidinhos da infância, vestido do batizado, do aniversário de um aninho, vestidão de quinze anos, de casamento, de madrinha, do luto e do túmulo - os vestidos, a princípio imaculados e a posteriori enegrecidos, mesmo encarnados, inserem as mulheres na sociedade dos homens. Mas, então, é a mulher quem escolhe o vestido ou o homem, ou a sociedade, quem o alicerça como preferência, se “on ne naît pas femme: on le devient”?

O feminino, esse enigma. Seja lá como for, como em tópicos de catálogo de roupas em lojas online, o vestido é o primeiro item da lista. Caso não pessoalmente, virtualmente, sim. Logo, melhor amigo da mulher? Fato mais procurado ou mesmo o mais vendido na temporada primavera-verão? Aliás, o vestido, tipicamente primaveral, florido, esvoaçante, fluido, maxi, longo, midi, curto, mini, o vestido camiseta, o vestido camiseiro, o vestido blaizer, o vestido envelope, o vestido slip, o...

Pois bem, o feminino, novamente escrevo: esse enigma, essa esfinge, Turandot inquiridora. E qualquer resposta que tentemos dar será uma tentativa mais árdua do que a prontidão de Calaf em intuir respostas acertadas. Isso porque o vestido é feminino, e, o vestido e o feminino é um mistério de pontas esféricas e pontudas. Pois quantos não querem ser feminino; e outros quantos não repudiam ser feminino? Amado ou odiado; querido ou depreciado.

Se apartada do sedutor mundo dos vestidos, inclusive das convenções mais simples e das regras básicas de encantamento em nossa sociedade, uma velha amiga disse, depois de ouvir um elogio que dei ao seu vestido: “tem que ser feminina, amiga!”. Pois tratou-se de um conselho que na hora não bem retive, nem sobre ele refleti; entretanto, depois, algo restou, e emergiu, como uma água parada que de sua aparente calma turbilhona e lança um monstro modificado.

Daí, tempos depois, os vestidos surgiram, godzillas adormecidos em fúria, talvez mais pela facilidade da peça única do que pelo conselho de mulher pra mulher, em pencas, de todos os tipos, com meia-calça e botins no inverno, com sandálias no verão, de alcinhas ou mangas tufadas, com ou sem cinto, mas nunca apertando a barriga como insistem em fazer as calças. Isso porque um ventre qualquer sempre cabe com conforto por debaixo de uma peça de tecido solta, ou pregueada por um elástico suave em torno da cintura. O vestido cai reto e certeiro num corpo como um cabide; e também redefine e envolve o formato ampulheta.

Aliás, o corpo hourglass tem como um dos amigos mais fiéis essa peça única. Ainda assim, não é só de vestidos que vive Marilyn Monroe. Com Barbara Stanwyck e Robert Ryan, em Clash by Night (1952), em River of No Return (1954), com Robert Mitchum, ou em seu derradeiro longa, The Misfits (1961), com Clark Gable e Monty Clift, apenas para ficar em alguns exemplos, vemo-la em calças, jeans em principal. Neste último, nem mesmo o vestidinho branco de atilhos, de estampa de cerejas, afasta-nos do visual básico e impactante de jeans com camisa branca, ao final.

Em Let’s Make Love (1960), o figurino é mais severo (sem falar dos números musicais), mas mesmo assim encantador (com direito à trenchcoat e béret, num passeio à francesa com Yves Montand), e até um simples (e famoso) tricô azul (ou lilás?), com meia-calça preta, usado na cena da canção “My Heart Belongs to Daddy”, por exemplo, parece suplantar o restante do figurino.

Mesmo em There’s No Business Like Show Bussiness (1954), em que se desfila pelo enredo entremeado por diversos números musicais, na canção “Lazy” ela porta calças bem sequinhas e, como sempre, extremamente ajustadas na cintura. Mas pra arrasar totally, é um vestido, que totalmente se molda ao corpo, como o do “Happy Birthday” da vida real ao presidente Kennedy, ou tantos outros da ficção, como em The Seven Year Itch (1955) (até acho o de bolinhas pretas e atilhos cruzados, da cena inicial da atriz, mais arrasador do que o branco da cena da saída de ar do metrô), e no desfile de modelos de cores intensas em Gentlemen Prefer Blondes (1953), com Jane Russel. Ah, e o vestido de sua aparentemente ingênua personagem em The Asphalt Jungle (1950)? Preto, decotado, mangas descaídas, clássico, mais um colar de brilhantes.

Uma verdade absoluta poderia girar em torno dos vestidos, mas deles como um assunto infinito. E certos vestidos eternizam quem os veste. Ou alguns seres eternos, icônicos, é que eternizam certas peças? Mas então, há termos para comparações e submissões?

Lembro de um professor de literatura no ensino médio dizendo sobre Adélia Prado: “Drummond de saias”. Eu já uso bastantes vestidos, graças à minha amiga Magaly, mas gostaria de os usar mais; e também de ler mais Adélia Prado. Isso porque ela deve ter poemas sobre vestidos, embora eu só conheça o “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade.

E releio esse poema lírico-épico, caso isso fosse possível, da história contada de um vestido, duas mulheres e um homem. E o vestido como lembrança, como prova de um crime, dependurado em um prego; um vestido como ponto de apoio em que um ciclo termina e se inicia. E uma história de vestido... machista ou um conto de miragem, de fantasia, ou de desejo e arrependimento, da ilogicidade de ser humano?

Essa mulher do vestido, bela, talvez pérfida, que “não quer homem”, e depois reaparece, “pobre, desfeita, mofina”, me lembra o samba “Maria Rosa”, de Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves, e a capa feita de trapos das vestes, outrora caras, feita de tantos tormentos.

Se a esposa traída, no poema, inquire “quede os olhos cintilantes/ quede graça de sorriso,/ quede colo de camélia?”, por sua vez, na canção, aquela que “era um anjo de formosa”, e que tinha um “vestido de baile”, “nem um olhar teve agora/ nem um sorriso encontrou”.

Serão as mesmas personagens essas mulheres atrativas, sedutoras mesmo sem o querer, que se remetem a vestidos (no auge e na recordação) e encaram situações-limite? Caso sim, como poderia ter glosado Danuza Leão reunida com Vinicius de Moraes, entretanto: o vestido, ao final, é da mulher o cachorro engarrafado. Se possível isto fosse...


Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 11/8/2022

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