COLUNAS
Quinta-feira,
25/4/2002
Uma análise sociossemiótica do trabalho
Adriana Baggio
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O trabalho como sistema produtivo é um dos fundamentos da sociedade, e está em processo de mudança. Como um alicerce que se move e balança o prédio todo, as alterações nas relações de trabalho estão afetando toda a estrutura social já sedimentada, e com a qual a gente já se habituou. A relação mais básica de trabalho, considerando um serviço realizado em troca de dinheiro, é aquela em que se trabalha para receber um salário. É uma condição para a sobrevivência, por isso não é questionada. Quem tem essa relação com trabalho – por dependência desse sistema e por falta de condições de romper o esquema – não questiona, apenas dá continuidade ao processo que, usualmente, é exploratório. Uma relação um pouco mais sofisticada é aquela onde o trabalhador reconhece sua dependência do salário e da relação trabalhista, mas não está satisfeito e questiona. Pode ter ou não condições de mudar o processo. A próxima relação, em uma escala ascendente, é aquela em que a pessoa gosta do que faz, está satisfeita com a relação entre o trabalho realizado e a remuneração recebida. Pode questionar, se for o caso, e buscar uma outra situação dentro do mesmo esquema. Existem ainda duas situações extremas, que estão fora do sistema produtivo, porque não envolvem as duas variáveis: trabalho e salário. A primeira é onde a pessoa não trabalha e também não recebe. Vive à margem do sistema. A outra é onde a pessoa recebe sem precisar trabalhar. É o explorador do sistema produtivo.
Todas essas relações podem ser visualizadas através de uma análise sociossemiótica do sistema produtivo. A sociossemiótica é uma ciência nova que procura identificar o processo de significação dos discursos não-literários. O discurso das relações existentes no sistema produtivo não são, necessariamente, discursos como entendemos literalmente, ou seja, um documento escrito, por exemplo. A idéia que temos destas relações podem ser consideradas como um discurso, e por isso, podem ser analisadas e estudadas pela sociossemiótica.
Um momento da análise sociossemiótica compreende um esquema gráfico simples, chamado octógono semiótico. O estabelecimento das relações dentro deste octógono forma um meta-modelo que permite o estudo das relações entre os termos que compõem o polígono. O octógono só existe pela contraposição de dois termos antagônicos, condição necessária para a significação. Neste caso, os termos básicos para a construção do nosso meta-modelo são trabalho e salário. A tensão dialética existente entre esses dois termos é a idéia do sistema produtivo.
Além da relação dialética entre os termos contrários trabalho e salário, existem as relações de contraditoriedade entre os termos não-trabalho e não-salário. Para facilitar o entendimento das relações, podemos considerar não-trabalho como ociosidade. Não-salário, literalmente, seria escravidão, mas como esse tipo de relação não existe no sistema produtivo aqui analisado, podemos considerar o não-salário como uma remuneração ínfima, degradante.
Trazendo os cenários apresentados no início do texto para o octógono semiótico, a relação entre os contraditórios trabalho e salário degradante representa a exploração. É o tipo de relação que existe hoje, e que tende a piorar até chegar a um ponto de exaustão dentro das sociedades futuras. Os sistemas informatizados, a robótica, as novas tecnologias fazem com que o trabalho operacional seja cada vez mais independente da mão de obra humana. Os empregos estão se especializando, o que abre espaço para pessoas com melhor formação. As pessoas sem formação, ou obsoletas, tendem a ser excluídas do sistema produtivo, e passarão a fazer parte do grupo representado pela relação salário degradante – ociosidade. A tensão dialética entre esses dois termos dá origem à marginalidade, à existência fora do sistema produtivo. A pessoa não trabalha, e sobrevive graças a renda que recebe de bicos, trabalhos informais, mendicância.
Outra relação existe entre os contraditórios salário e ociosidade, que representa a elite, e que em outras épocas representou a nobreza. É a classe que também não participa do sistema produtivo porque recebe remuneração sem trabalhar. A renda da elite provém da exploração do sistema produtivo, mas sem colaboração com este. De uma maneira simplista, poderiam estar nessa classificação os especuladores, que obtêm a renda a partir do trabalho realizado por outros.
A diminuição do espaço dentro do sistema produtivo ideal – relação equilibrada e benéfica entre trabalho e salário – e o aumento do número de pessoas que tendem a ir para a marginalidade do sistema, vão gerar um conflito que será inevitável na passagem do sistema atual para as relações de trabalho da sociedade do futuro. A tendência é que não exista mais trabalho. As máquinas serão responsáveis por todas as atividades que hoje geram trabalho, dos operacionais aos mais qualificados. As pessoas terão tempo livre para fazer o que quiserem. O problema é que o trabalho é hoje, para muita gente, uma espécie de sobrenome, de identificação, de referência de personalidade. As características pessoais são relegadas a um segundo plano. Enquanto um cartão de visitas abre portas, identifica, agrega valor, fatores como educação ou bom caráter não dizem nada. Em uma sociedade sem trabalho essas características pessoais podem voltar a fazer diferença. Outro ponto é que, sem trabalho, as relações voltam a ser pessoais, desprotegidas da indiferença ou da máscara do convívio “profissional”.
Outra conseqüência da ausência de trabalho é a maior quantidade de tempo livre, fator gerador de ansiedade. Esse tempo livre precisa ser ocupado novamente, o que talvez dê origem a uma quantidade maior de pensadores. Esse estágio é um retorno à época em que o homem, descobrindo o fogo (diminuiu o tempo de digestão, que era passado dormindo), passou a ter mais tempo livre e, conseqüentemente, começou a pensar, refletir. São dessa época as primeiras produções artísticas.
É evidente que uma sociedade sem trabalho, com recursos distribuídos de maneira equilibrada entre todas as pessoas, e onde o tempo seja usado para pensar maneiras de melhorar essa mesma sociedade, é uma idéia mais que utópica. Mas pode ser um vislumbre de uma nova estrutura social com a qual as futuras gerações vão precisar se adaptar.
Adriana Baggio
Curitiba,
25/4/2002
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