Carrancas. Sempre fui ligado em carrancas, na contradição que é utilizar aqueles totens horrendos como objeto de decoração. Sempre me assustaram, quando criança, os bustos de dentes arreganhados à entrada de restaurantes, lojas e até lares. Se não ficar nenhum trauma mais sério, e a curiosidade resistir, o tempo acaba passando, e a gente, aprendendo, mais tarde, que elas eram montadas na proa de barcos do São Francisco, para afastar os maus espíritos - mesmo motivo pelo qual acabariam sendo usadas como objetos de adorno (?) - que já existiam em naves vikings ou galeras romanas, e até uma lenda deveras bacana, versando sobre o gemido que as carrancas emitiriam antes do barco afundar: já imaginou, teu barco adernando e um guincho gutural saindo daquela carantonha de madeira? A fascinação me fez ter duas réplicas; uma, plantada na mesa do escritório, e outra, pendurada no chaveiro, e a curiosidade (sempre ela) me levou a procurar imagens na internet. O que descobri foi um autêntico Easter Egg, uma surpresa dentro de uma surpresa, na página, tinha que ser!, de um surfista.
Mais do que fotos de primeira, ele deu uma notável bola dentro ao classificar as carrancas como o "autêntico Tiki brasileiro", uma correlação brilhante. Do tipo que deixa esse povo da comunicação visual numas de como é que eu não pensei isso antes?, tal a obviedade da observação quando se comparam imagens de carrancas brasileiras e estátuas de ídolosTiki. Nessa orgia de totens carrancudos, não pude deixar de lembrar também de um parente mais distante, o horrível deus egípcio Bes. Voltando ao assunto: como todos sabem e ninguém ignora, Tiki é o nome que se dá à versão pop da cultura primitiva de ilhas da Polinésia, cheias de cores tropicais, deuses da fertilidade e da sorte, sempre de olhos arregalados e dentes expostos e artesanato em palha e bambu. A estética Tiki é vasta o suficiente para se espalhar pela decoração de interiores, roupas, moda, arquitetura e maleável ao ponto de se adaptar às ilustrações do Shag, ou, como sacou o Hiro, ao vilão Brak, do desenho animado Space Ghost. O auge da popularidade da estética Tiki foi no final década de 50 e início da década de 60 nos E.U.A., graças aos militares norte-americanos que trouxeram aquela mania das ilhas do Pacífico, na bagagem da 2ª guerra. Com o tempo, foi caindo em desuso, e hoje é mais identificada pelo acento kitsh, como no seriado Ilha da Fantasia, uma curiosidade mezzo cult, meio exótica, para colecionadores e gente que ainda acredita nas lendas dos mares do sul.
As duas principais referências que eu tinha do que fosse Tiki antes ir parar na página daquele surfista eram o Enchanted Tiki Room, atração na Adventure Land na Disney World, com autômatos de pássaros piando uma musiquinha numa cabana autenticamente Tiki, e os relatos da expedição Kon-Tiki, do norueguês Thor Heyerdhal, que estampara uma imagem do grande deus Tiki na vela da sua jangada. Se até agora nenhuma dessas indicações serviu para criar uma imagem clara do que seja a estética Tiki na sua cabeça, provavelmente vai agora, quando eu citar os ídolos Tiki mais manjados na face da Terra: os moais de Rapa Nui, a Ilha de Páscoa.
Ócio criador da poesia A Farsa da Boa Preguiça, além do título excepcional, é um texto teatral de primeira do Ariano Suassuna, cuja obra parece ter renascido para os palcos depois do sucesso da mini-série-que-virou-filme O Auto da Compadecida, dirigida por Guel Arraes com elenco global; era uma das suas 3 peças em cartaz no Rio de Janeiro na quinta-feira em que fui assistir.
O mote, como de costume, é simples: a cobiça do enriquecido Aderaldo Catacão, casado com a fútil Clarabela, por Nevinha, mulher de Joaquim Simão, poeta. Os conflitos surgidos do choque do espírito disciplinado, sério e trabalhador de Aderaldo com o preguiçoso, desleixado e pobretão Joaquim Simão ("Ô mulher, traz o meu lençol que eu estou no baaaaaaaanco deitado!") são introduzidos à platéia por Jesus Cristo, São Miguel e São Pedro - o último, ex-pescador e homem feito santo, toma partido pelo seu xará (pois chamava-se Simão Pedro), ao lembrar das agruras de ganhar o pão com o suor de cada dia e apoiar a "boa preguiça" de Joaquim Simão ("Não sei como se tem coragem de reclamar contra o ócio criador da Poesia"), contra São Miguel, arcanjo guerreiro, ironizado por nunca ter pego numa enxada. JC, identificado pelo nome popular de Manoel Carpinteiro, faz as vezes de mediador ("nem tanto, nem tão pouco"), puxando suas orelhas para que não cometam injustiças no exagerado apego aos respectivos protegidos.
Assistir a uma peça de Ariano Suassuna é abrir os olhos para a extrema riqueza da cultura popular, no melhor sentido dessa última palavra. Interpretações rebuscadas da poesia e a procura de um significado maior - esotérico? - por trás do figurativo são ironizadas logo no começo da peça, que se vale de recursos de grande simplicidade e impacto - ou seja, tipicamente populares - para dizer o que quer. Ariano já deve ter sido acusado por seus detratores de populista, simplista, de fazer propaganda socialista - tudo falso. Sua dramaturgia tem a qualidade atemporal dos clássicos: dá para ouvir ecos aqui e ali de O Avarento, de Moliére, na crítica à avareza de Aderaldo; à moda dos deuses em uma tragédia grega, os santos (e os diabos) descem à Terra disfarçados, interagindo com os mortais e interferindo em seu destino. Até mesmo debates ora em voga, como a crítica ao discurso único da eficiência e da produtividade feita pela turma do ócio criativo, são emulados pelo texto de Ariano. A falsa simplicidade de personagens, comportamentos e situações mascara uma complexidade de elementos capaz de abordar, literalmente, qualquer tema, como uma novela de Dias Gomes ou um episódio dos Simpsons, conduzindo à lições de uma moral que supera qualquer tipo de ideologia ("O homem deve respeitar três coisas nessa vida: a mulher, o que é certo e Deus").
O resultado poderia ser pesado, mas tudo isso desce redondo porque vem sensualmente embalado na riqueza de adereços originais, os mesmos volta e meia redescobertos por algum estilista para requentar as peças de sua última coleção primavera-verão; no calor dos ritmos comandados pela zabumba e triângulo - daqueles que fazem um arrepio na espinha quando as cordas da rabeca gemem - e em expressões do vernáculo como porreta, arretado, de inegável propriedade na descrição dos resistentes a uma realidade safada & sofrida, para a qual, como bem colocado no prefácio de O Tocador de Tuba (Chico Anísio, Rocco, 1977) só há duas saídas: em vida, a safadeza; na morte, a vida eterna. Ao modo de Joaquim Simão. De João Grilo. E de Chicó.
O último dos cariocas
Provavelmente sou uma das poucas pessoas a quem o nome de Antonio Gabriel Nássara evoca antes suas caricaturas à suas mágicas composições. Porque se o nome não diz nada à primeira sílaba, torna-se impossível esquecê-lo quando se associa-o às cançõesMundo de zinco ("aquele mundo de zinco que é mangueira / acorda com o apito do trem / ... / um barracão de madeira / uma cabrocha, uma esteira / todo malandro em mangueira, tem"), Formosa ("foi Deus quem te fez formosa...") ou, sobretudo, à marchinha de carnaval A-la-la-ô. Pronto, Fabio, agora você não precisa mais confundir Nássara com David Nasser. Mas falava nas caricaturas, pois foi por causa delas, em uma exposição no final dos anos 80 homenageando-o - provavelmente era Salão Carioca de Humor, provavelmente armada pelo Jorge de Salles - que pela primeira vez ouvi falar em Nássara. E logo coberto de elogios da turma toda d'O Pasquim, que levou-o a voltar às ilustrações na década de 70, em suas páginas: era o Mondrian do portrait-charge, dizia-se que ele não fazia caricatura, fazia logotipo de gente.
Traço absolutamente sintético, economia severa de linhas, moderno até a última gota de nanquim, Nássara criou para si um estilo único, limpo, que fica bem colorido ou no preto e branco - original: da mesma estatura, só consigo lembrar de Flávio Colin. Agora, no sexto aniversário de sua morte, ganhou uma exposição numa salinha perdida de um andar solitário de uma faculdade de dois nomes. Os universitários que passam lotados não têm noção das pérolas que se abrigam ali dentro. É triste a sina de países que não preservam a sua memória, e mais ainda a de cidades que perdem seus referenciais sem se dar conta disso. Nássara, assim como os recentemente
falecidos Carlinhos Niemeyer, Albino Pinheiro e do inventor do telecoteco, Oswaldo Sargentelli, era um dos últimos cariocas arquetípicos, modelo de longa garantia sem muitos similares no mercado. Em Vila Isabel, bairro que desenhou com pedrinhas portuguesas as partituras de Noel Rosa na calçada, existe uma estátua de seu poeta maior sentado numa mesa de bar, sendo servido por um garçom, que acaba de lhe trazer "palito, e um cigarro para espantar mosquito", com uma cadeira estranhamente vaga do seu lado. Sentar uma imagem de Nássara ali seria a melhor homenagem que a prefeitura poderia lhe fazer (já que os dois chegaram até a fazer parceria numa música). Quem sabe assim aqueles universitários resolvam conferir os originais na próxima exposição que houver.
Estava na casa de um amigo que iria jogar várias coisas foras. Entre as coisas achei uma edição antiga do Pasquim, como uma entrevista pra lá de hilariante com o Nássara. Claro que guardei e guardo como uma relíquia. Outro trabalho histórico do Nássara foi a capa que ele fez para o disco "Polêmica" do Roberto Paiva, que traz todos os sambas da famosa polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista.