COLUNAS
Quinta-feira,
16/5/2002
Tire a naftalina da gaveta...
Adriana Baggio
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...coloque em cima da mesa, pra não mofar as idéias. Com essa frase os meninos d'A Função abrem a música "Severino Soul" e passam o recado para quem ainda acha que na Paraíba só se faz forró. Da terra de Jackson do Pandeiro, Sivuca, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Chico César e muitos outros artistas que você gosta-mas-não-sabe-de-onde-vêm, estão saindo boas contribuições para o som nacional.
A abertura do cenário musical brasileiro tem acontecido há algum tempo. As fórmulas tradicionais ficaram tão desgastadas que mesmo o que parecia esquisito, folclórico, passou a ter seu espaço. Por pura falta de opções originais no cardápio, o gosto nacional começa a perceber as sutilezas de um sabor diferente, mais picante e de digestão mais elaborada, na música que chega de fora dos centros tradicionais. Só um contexto como esse permite que novas propostas possam aspirar a algum tipo de repercussão em um cenário dominado pela música construída e distribuída pela mídia de massa. O fato é que desde o mangue beat de Recife, a música popular brasileira de fato, ou seja, aquela que é produzida dentro da cultura nacional, tem atraído a atenção da crítica, do público, e porque não, do mercado.
Meu cabelo duro é minha clara herança negra
Sou parte da massa dessa etnia esculhambada
Ser humano mestiço, autêntico vira-lata de raça
Eu tenho raças, eu tenho barba pixaim
Espalhada em minha pálida cara
Meu caro, não se engane, não se considere um puro sangue
Doe sangue, faça um transplante de novas idéias
Clara Herança Negra
Se a música pop produzida no chamado eixo desenvolvido do país tem a desvantagem de nascer de uma cultura pasteurizada, palatável para o consumo certo e imediato, o som que vem dos extremos geográficos nacionais ainda preserva elementos culturais distintos, originais, e posiciona-se como uma proposta autêntica de música brasileira. Os mesmo traços que garantem a originalidade das propostas, no entanto, também impedem a sua divulgação e afirmação em nível nacional. Puro preconceito. Os músicos paraibanos, por exemplo, têm conseguido fazer uma mistura agradável entre elementos regionais, nacionais e globais. Por ser esquecido como centro de consumo do país, o Nordeste sofre com menos impacto as imposições culturais da mídia de massa. O resultado é que ainda permanecem traços culturais tradicionais nas manifestações artísticas produzidas por essas bandas.
Seu Zé Severino tocando repente
De repente vem na mente
De tocar um soul
Sou gringo brasileiro
Num boteco estrangeiro
Arrochando o pandeiro
Pra tocar coco em Moscou
Passei na feira pra comprar hambúrguer, queijo e feijão
Deitei na rede pra fazer uma conexão
A minha avó mandou um e-mail lá do Cariri
Pedindo para eu mandar farinha e caldo de siri
Pra ela fazer um pirão
Severino Soul
Das artes plásticas à música, o nordestino, e em especial o paraibano, mistura com naturalidade as fortes influências regionais e os novos conceitos trazidos pelo fácil acesso à cultura global. Seguindo essa receita, a música produzida na Paraíba vem alcançando destaque nacional. É uma exposição merecida e comemorada, às vezes até com entusiasmo provinciano. Essa música não é o tradicional forró pé-de-serra, que virou moda no sul, ou o ritmo obscenamente artificial que se convencionou chamar forró, mas que não passa de uma pobre, brega e insuportável releitura e tradução de hits de músicas melosas em língua inglesa. Mas é da mesma partitura de onde vêm a riqueza da embolada, do coco, da ciranda, do maracatu e do repente que saem as notas da nova música paraibana.
Ouvi no vento um xote assim "mêi fanqueado"
Entrei de frente, entrei de banda, entrei de lado
E no tumulto, no "mêi dos cabôco doido"
Tomei um ponche de boldo pra ficar ligado
Fiquei ligado no decote da "cumadi"
Levei um bote dos seus olhos furta-cor
No bate-coxa, ralando bucho no xote
Cantei um certeiro mote falando de amor
Xote Fanqueado
Misturados com rock ou blues, os ritmos nordestinos ganham um verniz cosmopolita que facilita sua entrada nos mercados mais comerciais, arejando a música nacional. Bandas paraibanas como Pau de Dá em Doido, Cabruêra, Flavio C e As Bastianas têm feito sucesso em festivais regionais, nacionais e internacionais. Algumas delas, refazendo o histórico movimento migratório para o Sul, já arrumaram suas trouxas e armaram a tenda no eixo Rio-São Paulo. Mas ao contrário de seus conterrâneos de outras épocas, chegaram com trabalho garantido, reconhecimento e promessa de dinheiro.
Tô sentindo cheiro de fumaça de mato queimado
Tô sentindo que estão mexendo bem o angu
A nave se escondeu na nuvem bem ali do lado
Com um ET de cabelo azul
A fome quando aperta o bucho o luxo é pecado
Churrasco de urubu
Eu tô ouvindo uma cantiga do sapo do lago
Num dueto com um cururu
No desafio do Blue
Severino Soul
Dessa mesma boa safra desponta outra banda que soube dosar a mistura de elementos regionais e universais com muita sensualidade. A Função recheia as letras repletas de sonoridade regional com os sons dançantes do funk, do soul, do jazz, do blues. Aqui e ali aparecem os ritmos nordestinos, mesclados com os estrangeiros. É um funk que flerta com um xote, um jazz agilizado na mistura com a embolada, um blues ritmado com uma percussão quase tribal. A grande chave do sucesso para deixar de ser commodity é saber misturar a originalidade da cultura local com uma linguagem global. E nesse processo de locoglobalização cultural A Função está no caminho certo. Apesar das palavras e das referências que podem soar estranhas para quem está do outro lado do país, as músicas d'A Função têm temáticas universais: amor, relação homem-mulher, inconformismo, vida. Tudo muito quente, leve, irreverente, e que a gente entende na pele, sem precisar de muita tradução.
Ela não viu que eu sou um exemplar de macho raro
Um seguidor determinado da monogamia
Ela não vê que minha vida virou uma agonia
Quando eu a procuro pro chamego ela não tá do lado
Ela não lê o lado certo do meu pensamento
Ela não vê que o lado certo é o lado do meu corpo
Eu lato, eu mordo, eu choro, eu berro se ela me abandona
E ela me diz na cara dura vendo o meu sufoco
Que meu amor é pouco, que meu amor é pouco
É pouco
A Função não poderia ter um nome mais apropriado. A melodia, as letras e o ritmo fazem o corpo se mexer meio sem querer, como se estivesse pedindo para se soltar para a festa. Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga já falavam em ir na função quando a idéia era festar. Mas a próxima festa d'A Função é se apresentar no Fenart, o principal festival cultural do estado e um dos maiores da região. O Fenart abre espaço para atrações alternativas locais, nacionais e internacionais. Ao contrário do que normalmente acontece, a banda vai receber cachê por suas apresentações. O caráter de exceção é devido à dificuldade que as bandas de música própria tem em conseguir se apresentar nos bares e casas de espetáculo. Entre os grupos cover e as bandas consagradas existe um limbo do qual as bandas com trabalho original tentam sair. Para cima, de preferência. Seguindo nessa linha, Jonathas Falcão - o compositor e letrista d'A Função - e seus companheiros de banda batalham por espaço na agenda cultural, nas rádios e na crítica especializada da cidade. Enquanto o reconhecimento "financeiro" não vem, só resta a eles ir tocando a vida todo dia e tocando música de vez em quando.
Curto minha vida do jeito que for
Contemplo o mundo com um rayban de camelô
Como carne seca como quem come filé mignon
Com a meretriz eu faço amor
(...)
Ganhei "mil conto" no jogo do bicho
Gastei metade com capricho pra te conquistar
Do meu inferno eu faço um paraíso
Do meu barraco, faço um castelo pra gente morar
(...)
Aí, meu irmão desencana
Pede um pão doce com caldo de cana
Vamos curtir o final de semana
Vida de bacana, vida de bacana
As letras que permeiam o texto são trechos de músicas d'A Função.
Para entrar em contato com a banda e solicitar CD demo, clique aqui.
Adriana Baggio
Curitiba,
16/5/2002
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