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Sexta-feira,
14/6/2002
Martin Amis
Helena Vasconcelos
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Autor de livros com títulos como "Success" (1978) e "Money" (1984), não é de admirar que Martin Amis, o "menino de ouro" das letras britânicas, que todos adoram odiar, se tenha convertido num símbolo do rito de passagem do final do antigo para o novo século. A sua trajectória não podia ser mais metafórica (e meteórica). Ele evoluiu com o tempo, criando uma sucessão de personagens, muito semelhantes a ele próprio e a todos os que participaram, a bem ou a mal, nas convulsões do milénio moribundo.
Martin nasceu em 1949, herdou a sobrecarga da imagem de um pai famoso e foi crescendo às voltas com uma adolescência errante, uma chegada à idade adulta nos permissivos anos sessenta, o início da carreira nos turbulentos anos setenta, a rendição e, segundo as más línguas, a submissão ao deus do dinheiro e da fama, nos anos oitenta, a mudança de vida, de família e de atitude, nos anos noventa. Os seus cinquenta anos foram celebrados com pompa e muita circunstância e a publicação das suas memórias "Experience", ajudaram a dar corpo a uma figura ímpar que, como ninguém, "marcou o tom" da época que atravessamos com raiva, fúria, ironia e violência, sem esquecer uma total ausência de auto-complacência.
Martin Amis estava, desde que nasceu, destinado a ser famoso. Pelo menos, essa é a opinião (quase) generalizada. Filho de Kingsley Amis, um dos pilares da literatura inglesa, enteado de uma escritora (Elizabeth Jane Howard), casado com Isabel Fonseca (também escritora), o seu mundo tem sido, naturalmente, o da chamada "realeza" literária. Como William Chandran, o personagem de "Half a Life" (Ed. Picador), o último livro de V.S. Naipaul que estava destinado à vida literária "antes mesmo de ter publicado um livro", também Amis, apesar de não ter sido encorajado pelos progenitores (ao contrário da madrasta que o motivou bastante), se lançou, muito naturalmente, na senda da criatividade literária.
Martin veio ao mundo em Oxford a 25 de Agosto e estudou em Inglaterra, E.U.A e Espanha. Em "Experience" ele relata com humor corrosivo os seus primeiros passos na senda da fama e do sucesso, sem obliterar os fracassos, incluindo as referências à sua pequena estatura que não o ajudava num dos seus passatempos favoritos: "engatar miúdas todas mais altas (do que ele)" enquanto se arrastava com os amigos pelas casas de gelados das redondezas. Uma antiga namorada do seu irmão Philip recorda: ".eles eram crianças totalmente sem educação, do género de se assoarem aos cortinados nas casas dos amigos. (Mais tarde), Martin passava os dias deitado a fumar charros, a conversar, a ouvir os Beatles e a levar adolescentes para o quarto. No entanto, não me surpreende o facto de ele se ter tornado tão famoso."
Depois do divórcio dos pais, Martin viveu com Kingsley nos Estados Unidos, Espanha e Portugal. Apesar de hoje em dia o considerarem um snobe, Martin diz que se lembra de "serem pobres". O avô paterno era da classe operária. A família da mãe incluía um milionário vitoriano que se desfez do dinheiro e se tornou missionário. (Uma vez, Martin perguntou ao pai se eram nouveau-riche ao que Kingsley respondeu : "Seguramente somos bastante nouveau mas mesmo nada riche.")
Quando tinha dez anos, Martin foi para os Estados Unidos, para Princeton, New Jersey, ("Eu era o único rapaz - o único ser do género masculino - que usava 'shorts' na cidade inteira"), uma estadia que contribuiu para desenvolver nele o interesse pela literatura norte-americana e, principalmente, para se deixar influenciar pela linguagem das ruas e dos filmes e contagiar pelo frenesi e pela ganância de uma sociedade que se revia (e revê) em heróis forjados pelos "media".
Em 1987 publicou "The Moronic Inferno", um conjunto de textos sobre a América e a sua literatura, nos quais dizia coisas como, "Reagan daria um óptimo criado de mesa" e atacava "gigantes" como Philip Roth, John Updike, Norman Mailer, Joan Didion e Gore Vidal, preferindo-lhes, por exemplo, Gloria Steinem e referindo Nabokov e Saul Bellow como os escritores que mais o influenciaram. Como exemplo pode referir-se o romance "Night Train" (1997) que é uma clara incursão no universo "hard-boiled", com os seus detectives duros e carismáticos à maneira de Dashiell Hammet e Raymond Chandler. Neste livro percebe-se o gosto que Amis tem pela utilização e até invenção de palavras que mantêm o leitor numa espécie de nervosismo histérico, enquanto acompanha a sua aliteração violenta e as imagens fortes e irónicas.
De volta a Inglaterra, Amis formou-se em Oxford com um "first" em Inglês, ganhou o Somerset Maugham Award com "The Rachel Papers" (1973) e estabeleceu-se (mais ou menos) como jornalista "free-lancer" e crítico literário. Tudo parecia desenvolver-se no melhor dos mundos até que, no dia 27 de Dezembro de 1973, Lucy Partington, uma jovem de vinte e um anos, desapareceu numa rua de Londres. O caso chocou a opinião pública. Lucy era uma rapariga calma e sensata que estivera com uma amiga a conversar sobre o futuro e sobre o seu ingresso num curso de arte medieval. Lucy era, também, prima de Martin, alguém de quem ele gostava e cuja imagem o atormentou ao longo da vida. O seu corpo só foi encontrado mais de vinte anos depois.
Foi no Times Literary Supplement que Amis conheceu Mary Furness que serviu de modelo para muitas das suas personagens femininas. Mary era muito bonita e "wild", a imagem perfeita dos loucos anos setenta, da libertação sexual. Uma vez, atirou com um pesado cinzeiro à cabeça de Martin, pegou-lhe fogo a um manuscrito, costumava deitar-se no asfalto à frente do seu carro e gostava de correr nua, pelas ruas de Londres. (Amis sempre adorou mulheres sexy e inteligentes e a lista das suas relações sentimentais é impressionante: Tina Brown, Emma Soames, Julie Kavanagh, Claire Tomalin, Lucretia Stewart, Victoria Rothschild.) Foi também no TLS que conheceu a sua primeira mulher, Antonia, uma americana considerada muito bela, intelectual e "séria". Depois de casar e de ter dois filhos, Amis dedicou-se a temas como a guerra nuclear, em "Einsten's Monsters" (1987) uma colectânea de cinco contos que funcionam como um aviso do apocalipse e das suas devastadoras consequências, aos quais o autor juntou um ensaio no qual explica a razão da sua obsessão com a ameaça nuclear. (Uma das teorias aqui desenvolvida relacionava o eclodir da Aids com as experiências atómicas). Quando escreveu este livro, ele fazia eco das preocupações de uma geração criada com o fantasma da guerra nuclear e com a realidade bem palpável de uma sociedade impiedosa. Vivia-se em pleno Thatcherismo (ironicamente, Thatcher era a heroína do seu pai, Kingsley), com a sua psicologia de dureza e desprezo em relação aos mais fracos. Num mundo assim, as pessoas seriam "mais parecidas com baratas" e, por isso, não seria de admirar que fossem capazes até de "torturar os seus próprios filhos". Amis mostrava-se pessimista com uma espécie de ironia cortante e um prazer perverso em explorar os aspectos mais negros e degradantes da sociedade. Segundo ele, viviam-se tempos mais destrutivos do que os de Hitler e os seus carniceiros. "Cada dia que passa é mais um passo para a perda da inocência e para um desgaste cada vez mais dramático da qualidade de vida" afirmou.
Em 1984, Martin viu o seu sucesso confirmado com "Money", uma comédia muito negra que expressa bem a cobiça desmedida e o pânico do final de século. O seu personagem principal, John Self, é um voraz consumidor de "fast food, fast drinks, fast cars e fast women". Adepto entusiástico de pornografia, masturbador compulsivo, cultivador de ressacas de toda a etiologia e ansioso por dinheiro sempre fresco Self diz coisas como esta: "Quando encontro um homem, penso sempre, será que o vou derrotar? E quando encontro uma mulher, penso sempre, será que a vou foder?" "Money" aborda também temas como o facto de, durante duas décadas, se ter ganho dinheiro, muito dinheiro, sem trabalho, sem verdadeira "produção". As fábricas fecharam e o desemprego assolou o mundo ocidental: "Noutro dia, no jornal, descobri que durante a minha curta ausência, toda a Inglaterra fora devassada por tumultos e motins, por desastres sociais nos chamuscados bairros da lata. A grande causa de toda esta zanga, pude eu aferir, fora o desemprego" (pág. 93) John Self, com este nome revelador, tão pouco faz o que quer que seja, dedicando o seu tempo às seguintes actividades: "refeições rápidas, espectáculos eróticos, jogos electrónicos, bandidos manetas, vídeos com cenas eventualmente chocantes, revistas pornográficas, álcool, bares, pancadaria, televisão, punhetas" (pág. 94)
Com personagens deste calibre, não é de admirar que as feministas lhe tenham feito uma campanha feroz, à semelhança do que já acontecera com Kingsley quando, em 1985, publicara "Stanley and the Women". Martin viu-se a braços com acusações de misoginia exacerbada. Kate Saunders escreveu no Sunday Times: "Martin Amis é aceitável para os homens. Mas uma mulher com dois dedos de testa evita ler as suas descrições de roupa interior suada". No meio literário passaram a defini-lo da seguinte maneira : "um homem muito pequeno, com um grande talento, que odeia as mulheres".
1989 não foi um ano fácil para Martin. A sua inclusão na lista dos finalistas do Booker Prize foi boicotada pelas feministas Maggie Gee e Helen McNeil e a sua vida familiar começou a mostrar sinais de desgaste. Estava a escrever "London Fields", cuja acção, que se passa em 1999 num cenário apocalíptico de crise nuclear, funcionava como um espelho de uma Inglaterra corrompida e destruída, social e economicamente. Neste romance, o "herói", como acontece em "Night Train" é uma mulher, Nicola Six, uma espécie de John Self no feminino, "potencialmente, magicamente, incontrolavelmente atraente" que reduz todos os homens de todas as classes a "destroços humanos" e vive obcecada com a ideia do fim do mundo. Para antecipar essa situação, ela procura alguém que a assassine, dando-se ao trabalho de encenar (e provocar) a sua morte. Curiosamente, este é um livro cómico como aliás são (quase) todos os romances de Amis que consegue fazer rir o leitor nas situações mais trágicas e arrepiantes como fizeram Dickens, Evelyn Waugh e o seu próprio pai.
Mas foi só em 1994 que a cena literária inglesa estremeceu nos seus alicerces com as atitudes do seu mais odiado (e amado) enfant terrible que iniciara uma ligação com Isabel Fonseca, uma americana que vivera vários meses numa comunidade cigana nos arredores de Tirana, Albânia, e se preparava para publicar um livro sobre a sua experiência ("Bury me Standing", uma mistura de história, reportagem e recolha de tradição oral apareceu em 1995 na Chatto & Windus). Isabel, uma "rica herdeira" nova-iorquina, filha de um escultor uruguaio, era uma mulher sofisticada que pertencia já há alguns anos ao universo literário londrino. Amiga de Julian Barnes e de Salman Rushdie, jovem, inteligente e atraente, Isabel viu o seu trabalho como escritora ser colocado em segundo plano e apreciado à luz da situação de a-mulher-que-levara-Amis-a-divorciar-se. Entretanto, este pedira à sua agente e amiga, Pat Kavanagh, que sacasse um avanço de 500.000 libras à Jonathan Cape para um contrato de 800.000 libras pelo seu novo livro "The Information". Kavanagh conseguiu juntar "quase" essa soma mas Amis não se deu por satisfeito e, pura e simplesmente, mudou-se para a tutela do famoso agente americano Andrew Wylie, o "Chacal", firmando um contrato com a HarperCollins de Rupert Murdoch. (Em 1996, Amis voltou para a Random House, "parente" da Jonathan Cape, com um novo "deal" que se diz ter rondado um milhão de libras). Julian Barnes o marido de Kavanagh e grande amigo de Amis, com quem partilhava uma paixão pelo ténis, escreveu-lhe uma carta a declarar que a amizade entre ambos era um capítulo definitivamente encerrado. A famosa escritora Antonia S. Byatt criticou duramente Amis na imprensa, afirmando que ninguém tinha a culpa de ele precisar de dinheiro para o divórcio e para uma dentadura nova. Tipicamente, Amis vingou-se à sua maneira, publicando "The Information", uma história sobre a inveja, o despeito, as humilhações e as tristes figuras de dois escritores, Richard Tull e Gwyn Barre, envenenados pelo ciúme e pela mediocridade. Tull vive obcecado com a ideia da imortalidade, esforçando-se ao máximo para conseguir críticas favoráveis e preocupando-se com os índices de audiência. "O criminoso assemelha-se ao artista no que diz respeito ao seu pretensiosismo, incompetência e pena de si próprio", diz um dos personagens. Amis afirmou que este romance era sobre a "consciência da morte". Aplicava-se muito bem à sua própria crise de meia idade e retomava os seus temas preferidos: a rivalidade entre os homens (como em "Success"), o glamour do dinheiro "sujo" e os riscos para o manter, (como em "Money" e "Rachel Papers"), a dificuldade em compreender as mulheres, a irreversibilidade do tempo e o terror metafísico.
Martin não é um autor de análise psicológica, preferindo-lhe a descrição nua e crua da "vida real". Os seus personagens são exagerados, narcisistas, gabarolas, cheios de vícios e parte integrante de uma sociedade desregrada que vai buscar muitos dos seus códigos ao universo da MTV e da cultura Pop. (Em 1995, o grupo Blur nomeou-o "inspirador" oficial da banda). Num mundo escatológico e ansioso, Amis está atento ao som das palavras da gente da rua, com a sua capacidade para a invenção, a sua agressividade sardónica e desprezo pelas convenções, ao mesmo tempo que mistura a influência do seu próprio meio, o da inteligentsia britânica. No que diz respeito a drogas, com personagens que se injectam, snifam e fumam desenfreadamente tudo o que encontram, Amis tem sido frequentemente questionado sobre os seus gostos. Há cerca de quinze anos respondeu desta forma a um jornalista: "Tomei (pastilhas) de LSD umas três ou quatro vezes e snifei coca pouco mais do que isso. Nunca me meti na heroína mas fumava erva. O álcool é que era a minha droga favorita, simplesmente porque não havia lojas que vendessem erva."
Neste momento, o já não tão jovem escritor, considerado como o autor mais representativo da sua geração, é um homem bem mais maduro, partilhando com o pai a glória de serem, cada um à sua maneira, uma espécie de consciência das suas respectivas épocas. Kingsley foi um dos "angry young men" dos anos cinquenta e sessenta; Martin é o arauto da decadência e desregramento dos anos oitenta e noventa. Ambos utilizam o humor como uma arma feroz e temível; Kingsley faz rir até às lágrimas, Martin faz rir convulsivamente e nada do que escreve é "politicamente correcto". Repetidamente, em entrevistas, afirma que a perda da inocência e os falhanços são o seu tema favorito e que o sucesso, ao contrário do que podem pensar, é assunto para ser tratado por Jackie Collins, não por ele. "Os dois ingredientes principais da profissão de escritor são a ansiedade e a solidão", características que, segundo este autor, que interpreta na perfeição o Zeitgeist, se estendem a toda a humanidade. Como está, neste mesmo momento, a ser demonstrado...
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Publicado originalmente na Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)
Helena Vasconcelos
Lisboa,
14/6/2002
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