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Quinta-feira,
4/7/2002
A Ilíada
Denis Zanini Lima
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A Ilíada, poema épico de 24 cantos atribuído a Homero, composto entre séculos 9 e 8 a.C., narra a ira do herói grego Aquiles, filho do bravo Peleu e da deusa Tétis, e os desdobramentos de sua recusa em prosseguir na Guerra de Tróia. A ação central acontece na imediações da cidade de Ílion (Tróia), no décimo ano de combate entre aqueus (gregos) e troianos.
Como de praxe nas obras épicas, a narrativa é permeada por exaltações a areté (a excelência guerreira) das personagens, epítetos invocando a linhagem nobre dos guerreiros, tramas vingativas, a descrição pormenorizada das mortes ("A cruel pedra esmagou os dois tendões, e ele caiu no pó (...) E Peiro, que o ferira, correu até ele e atingiu-o, perto do umbigo, com uma lança, e suas entranhas se espalharam pelo chão e a escuridão velou-lhe os olhos") e o pesar pela falta de um estimado combatente.
O desencadear dos fatos está umbilicalmente ligado à defesa da timé, a honra pessoal, o mais cultuado valor humano entre os antigos. Em nome dela, argivos e troainos movimentam incessantemente o afiado bronze, forrando o chão de sangue - vale lembrar que a guerra teve início com uma afronta moral, quando Páris, príncipe de Tróia, tomou para si a mulher do rei grego Menelau.
A história começa justamente quando Aquiles, aclamado o melhor dos guerreiros gregos, tem sua timé ultrajada pelo rei dos aqueus, Agamenon. Este, inconformado em ter de devolver - por interferência do deus Apolo - Criseis, uma de suas presas de guerra, resolve amenizar seu ônus tirando de Aquiles sua mais bela mulher, Briseis.
Furioso, Aquiles, subserviente a sua posição hierárquica, cede a jovem, mas, em retaliação, retira-se dos campos de batalha. Ao saber do ocorrido, a deusa Tétis, mãe de Aquiles, roga a Zeus, o senhor do Olimpo: "Pais Zeus (...) atende o meu desejo: honra meu filho, cujo destino é bem curto. Agamenon, o rei dos homens, ultrajou-o, pois tomou a sua presa de guerra e com ela ficou. Vinga-o, Zeus olímpico, conselheiro. Torna os troianos poderosos até que os aqueus reverenciem meu filho e tributem as honras devidas".
Piedoso, Zeus cede aos apelos da deusa, por se tratar de um assunto envolvendo a honra de um nobre guerreiro. Entretanto, o fato se concretizará de maneira muito mais espinhosa do que previsto.
Ratificada a saída de Aquiles, gregos e troianos voltam a se enfrentar. Estabelece-se que um duelo entre Menelau e Páris, pivôs da guerra, decidida quanto ao destino do embate. Menelau se sai muito bem e quando estava prestes a dar o golpe de misericórdia, Afrodite salva Páris (que a elegera a mais bela entre as deusas), levando-o de volta para casa, onde encontra sua mulher, Helena.
No prosseguimento da batalha, o filho do rei Príamo de Ílion, Heitor, o mais valoroso dos troianos, e Ajax, filho de Telamônio, travam emocionante combate, que termina, contudo, sem vitorioso. No meio de tamanha carnificina, há espaço para gestos cavalheirescos, como a troca de armas entre o troiano Glauco e o aqueu Diomedes, ao constatarem que suas famílias mantiveram estreitas relações no passado.
No Panteão, os deuses não se abstêm da guerra, tomando sempre partido de um dos lados. O entrevero entre os humanos e suas conseqüências muito interessa aos imortais. Ardilosos, cada um, a sua maneira, interfere para auxiliar um guerreiro ou povo de sua preferência. Embora fosse o mais poderoso dos deuses, Zeus não podia decidir, de imediato e sozinho, o resultado da Guerra de Tróia, sem vencer oposições, estabelecer compromissos, forjar planos complexos.
Diversas são as passagens nos quais os habitantes do monte da Tessália mudam o destino das personagens. Heitor, por exemplo, teve sua pele salva em muitas ocasiões por Apolo; Enéias, quando estava prestes a sucumbir aos pés de Aquiles, contou com a intervenção de Possêidon; Hera, para lubrificar Zeus e ajudar os gregos, engendrou um audacioso plano com Possêidon, Afrodite e Sono; e Atenéia não pensava duas vezes em aparecer na forma humana para inflar o brio dos aqueus.
Em A Ilíada, excetuando-se a imortalidade e a imensurável força física, os deuses possuem características físicas e morais semelhantes aos humanos. Sentem ciúme, paixão, inveja, ódio, alegria, dor e podem até ser feridos (assim como Ares o foi por Diomedes). Há de se ressaltar que muitos guerreiros têm, em sua árvore genealógica, ramos no Olimpo, como Sárpedon e o próprio Aquiles. Além dos laços consangüíneos, o relacionamento entre eles é constante, pela própria necessidade dos humanos em fazer sacrifícios para os deuses em troca de favores.
O sacrifício às divindades olímpicas constitui a amizade entre os homens e os deuses. Os habitantes do Olimpo assistem aos sacrifícios e regozijam-se. Ao sacrifício, segue o banquete, uma refeição comum em que a repartição das carnes sanciona e legitima as hierarquias sociais, cabendo as melhores partes aos magistrados, aos sacerdotes e aos cidadãos mais eminentes.
Essa oferta inclui presentes, libações, prestigiosos edifícios de culto; todavia, o seu elemento essencial é a oferta alimentar, o sacrifício de animais. Vários são os trechos no livro ilustrando essa situação.
Um exemplo acontece quando Agamenon promove o sacrifício de vários touros e bodes a Apolo quando o Febo cessa a matança entre os gregos, logo no início do livro. O sacrifício exprime sempre a renúncia, por parte do grupo humano, a uma porção dos seus recursos alimentares mais preciosos, e a sua entrega aos poderes divinos, que devido a esse cuidado, deveriam aplacar-se e revelar-se benévolas para com os homens.
No prosseguimento da guerra, os gregos, desfalcados de Aquiles, sentem os revezes da situação. Mesmo com seus melhores homens (Menelau, os dois Ajax, Ulisses, Diomedes, Idomeneu e Meriones), o exército de Agamenon não consegue deter o avanço de Heitor e seus bravos guerreiros Enéias, Glauco, Sárpedon, Polidamas e Agenor.
No decorrer do embate, os troianos acampam perto dos navios dos aqueus e estão na iminência de queimá-los. Vendo a gravidade da situação, Agamenon envia uma embaixada de paz a Aquiles, para tentar dissuadi-lo. Recluso em sua tenda, ao lado de seu fiel companheiro Pátroclo, o herói permanece alheio aos acontecimentos. Não lhe comove os apelos para que volte, nem as oferendas de Agamenon. Os gregos teriam sido dizimados pelos troianos na terceira e mais atroz da batalhas se Possêidon e Hera não viessem rapidamente em seu auxílio.
Mas a folga dura pouco, e logo os filhos de Ílion retomam a rédeas da situação. Pátroclo roga, então, a Aquiles que o deixe endossar suas armas, que seguramente poriam o inimigo em fuga. O herói acede aos pedidos do amigo, que rechaça os troianos no exato momento em que se aprestavam para incendiar os navios.
O êxito de Pátroclo inflama a moral das tropas, que se dispõem a perseguir e trucidar o inimigo. Os troianos são acossados até os muros de Ílion, onde a batalha se acirra, com predomínio dos gregos. Pátroclo, porém, é ferido, e Heitor consegue se aproximar para desferir-lhe o golpe final.
Depois de matá-lo, Heitor toma para si a armadura de Aquiles e tenta levar o corpo para dentro da cidade, afim de que ele não tenha os rituais fúnebres, a maior humilhação a ser imposta a um guerreiro. Ajax, filho de Telamônio, e outros aqueus conseguem, porém, levar os despojos até o acampamento grego.
Aquiles, ao saber do fatídico destino do amigo, se desespera, em pranto convulsivo, e decide-se vingá-lo: "E agora, Pátroclo, não te enterrarei enquanto não trouxer para aqui a armadura e a cabeça de Heitor, teu matador, de forte coração. Doze gloriosos filhos dos troianos matarei diante de tua pira, para vingar sua morte". Este trecho é dotado de um forte caráter emotivo, propositadamente exagerado, para enfatizar a dor pela perda de uma pessoa querida.
Aquiles reconcilia-se com Agamenon, que lhe devolve Briseis e oferece-lhe inúmeras oferendas. Devidamente paramentado com as armas produzidas pelo deus Hefestos, e com a alma repleta de ódio, o filho de Peleu deixa um rastro de sangue por onde passa. "Morrei, troianos, até que tomemos a cidadela sagrada de Ílion, vós fugindo e eu, atrás de vós, matando (...) haveis de morrer de morte cruel, até que todos vós expieis a morte de Pátroclo."
Inúmeros são os gladiadores que perecem sob a lança do herói grego. Mas Aquiles, nos momentos de perigo, também conta com a benevolência dos deuses. Quando o rio Escamandro se preparava para tirar a vida do filho de Tétis, Hefestos, deus do fogo, contra-atacou, fazendo o rio recuar e deixando Aquiles prosseguir seu plano de vingança.
Temerosos, os troianos protegem-se atrás dos muros da cidade. O único que se recusa a refugiar-se, não atendendo aos apelos desesperados de seu pai, o rei Príamo, é Heitor. Este sabe que Aquiles lhe é muito superior, mas fugir significaria sua ruína pessoal. A manutenção da honra conta muito mais do que a da vida, por isso prefere ficar e enfrentar seu destino.
Esta passagem realça bem o conceito da timé, a qual os povos antigos tanto valorizavam. Na Ilíada, fica evidente que, ao guerreiro, mais valia ter uma morte digna, com direito a um enterro grandioso, do que sobreviver com a pecha de covarde.
Heitor não resiste aos ataques de Aquiles e acaba morto. Cumprido sua promessa, o herói leva os despojos para junto dos navios, para dar início às festas fúnebres em honra de Pátroclo. São realizados jogos e erguido um túmulo. O corpo de Heitor, seguindo desejo de Aquiles, fica ao léu, para ser consumido pelos cachorros e aves de rapina.
Os deuses, entretanto, comovidos com o sofrimento da família de Heitor, resolvem preservar o cadáver e embutir coragem no velho rei Príamo para que ele vá até o campo aqueu para reaver o corpo. Aquiles, ao ver o ancião implorar pelo filho para dar-lhe um enterro decente, comove-se à recordação do pai, Peleu, que não mais reverá, e entrega-lhe os despojos do filho. Hécuba, a mãe, e Andrômoca acolhem o corpo de Heitor; seu lamento encerra a obra.
Denis Zanini Lima
Santo André,
4/7/2002
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