COLUNAS
Sexta-feira,
23/8/2002
Kafka e as narrativas
Julio Daio Borges
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"Faça o que quiser. A partir de hoje nossos caminhos se separam. Julgo que não considera isso nem inesperado nem incômodo. (...) No início, supus ser-lhe útil com a minha intervenção, ao passo que agora posso ver que eu o prejudiquei em todos os sentidos. Por que as coisas tomaram esse rumo eu não sei, os motivos para o êxito e o fracasso são sempre múltiplos; não procure apenas aquelas interpretações que falam em meu desfavor. Pense também em si mesmo; tinha as melhores intenções e no entanto sofreu um revés. (...) Mas chega disso. A única expiação que posso assumir é pedir perdão e, se o exige, a confissão que lhe fiz aqui, eu a repito publicamente."
("O mestre-escola da aldeia", Narrativas do espólio [1914-24])
Kafka é o tipo de autor que conquista logo na primeira frase. Ou então não conquista jamais. De forma que, para os eternos apreciadores de suas histórias, qualquer migalha tem um valor inestimável e, à maneira de Max Brod, publicariam todo o espólio - também sem hesitar - se este lhes fosse confiado. Kafka, se soubesse dessa traição, jamais a teria perdoado; com a convicção peculiar dos solitários, manifestaria sua decepção em palavras, através de um rompimento definitivo e cáustico. O mesmo que protagonizaria, em vida, para encerrar seu último ato: agonizante, acusando o próprio médico de assassinato, apenas por este ter lhe recusado uma injeção letal.
A imagem é forte, digna das novelas, dos contos e dos romances de Kafka. Mas, muito possivelmente, não corresponde à verdade. Como todo o resto também não corresponde. Kafka cobriu-se com o manto do fracasso, para, como os judeus retratados por Nietzsche, exaltar sua condição de oprimido e se elevar. Contrapunha-se, naturalmente, à figura vencedora do pai: um bem-sucedido comerciante de Praga; o mesmo que depositava cada novo livro seu numa pilha que não planejava tocar. O retrato dramático dessa relação conflituosa - a mesma que motivaria toda a sua obra (afirma a psicanálise) - está irretocavelmente esboçado em Carta ao Pai (1919), o único tratado edipiano jamais escrito por Freud.
Assim sendo, o opus kafkiano teria servido exemplarmente ao conteúdo programático das esquerdas mais variadas, não fosse por dois aspectos fundamentais: Kafka era um tremendo de um burguês; e Kafka gargalhava ao ler, para os amigos, as desventuras de seus anti-heróis, como Joseph K. Elevaram-no então à condição de profeta do Totalitarismo, afinal morreu em 1924, quando o Nazismo, que perseguiria e daria cabo de suas irmãs, ainda nem era uma ameaça. Por fim, reduziram sua obra a uma mera alegoria da "burocracia" (sobretudo em O Castelo [1922] e O Processo [1914]) e do "sistema", que massacra toda e qualquer individualidade (principalmente Na colônia penal [1914], mas também em O Processo). Completando a amarração, mais uma vez, o pai - junto a todos aqueles lugares-comuns sobre rejeição filial (a partir de O veredicto [1912], A metamorfose [1912], O foguista ou América [1912]).
Kafka, no entanto, não poderia se conformar às caricaturas desenhadas pela crítica a partir de alguns traços gerais. Onde entrariam, por exemplo, a força de suas fábulas, como "Diante da Lei" (do volume Um médico rural [1919], retomada magistralmente em O Processo [sempre ele]) ou, para ficar nas recém-lançadas Narrativas do espólio, "A Ponte": "Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradiça. (...) Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar."
Se a sugestão de apólogo ameaçava remetê-lo novamente às origens judaicas, o que dizer então de seus mergulhos no poço fundo da Tradição, como em "A verdade sobre Sancho Pança" (também presente nas tais Narrativas do espólio): "Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio - a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote - de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais no entanto, por falta de um objeto predeterminado - que deveria ser precisamente Sancho Pança -, não prejudicaram ninguém."
Contrariando também qualquer infusão de religiosidade (inclusive por parte do próprio Brod: "Que tenho eu em comum com os judeus? Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo..."), Kafka, como todo estilista, não fez mais que sua obrigação: escreveu como um demônio. Se durante o dia gastava seu latim como advogado, numa seguradora ou repartição pública, à noite costumava arder na grande fogueira da literatura. É recorrente, em sua fortuna crítica (ainda que não indique nenhum padrão específico), o episódio em que, de uma sentada, compôs a novela O veredicto (uma daquelas "contra" o pai, com final apocalíptico-suicida) - no diário, reclamou depois das pernas dormentes, já que finalizou a última frase às 6 da manhã, tendo se sentado às 10 da noite (do dia anterior) e tendo olhado para o relógio uma última vez às 2 da madrugada.
Claro, como todo sujeito que tem alguma coisa a mais na cabeça (Paulo Francis), Kafka quis se matar. Não chegou a atentar propriamente contra a vida, mas registrou seu desejo de se atirar pela janela (por exemplo), depois de horas estirado no sofá - após ouvir as reincidentes censuras do pai, por causa de mais um trabalho insatisfatório. Salvaram-lhe as suas mulheres; ele teve algumas. Apaixonado por Felice Bauer, uma de suas promessas frustradas de noivado, escrevia-lhe diariamente três terapêuticas cartas - a coleção completa reúne mais de mil (Modesto Carone, benemérito tradutor, tem dúvidas se vai encará-las). Em termos de língua, Milena Jesenská, um caso do tempo em que Kafka noivava Julia Wohryzek, foi um estímulo intelectual: com ela discutia seus escritos, enquanto a mesma os vertia para o tcheco. Mas quem o acompanhou na longa noite escura da alma, foi a jovem Dora Dymant, fiel na tuberculose (e fiel também na queima de alguns manuscritos, perdidos para sempre no limbo das cinzas).
É igualmente legendária, no folclore kafkiano, a história de que, já no leito de morte, revisava freneticamente os manuscritos de Um artista da fome (1922-24) e A construção (1923). Sobre o primeiro inclusive ("- Porque eu - disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. - Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo. / Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos embaciados persistia a convicção firme, embora não mais orgulhosa, de que continuava jejuando.") é comum se afirmar que representa a dificuldade do próprio Kafka em engolir sólidos, já irreversivelmente em sua fase terminal. Desse conjunto, faz também parte "Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos", encerrando o ciclo de personagens do reino animal. Ou seria do reino dos humanos?
"'Ah', disse o rato, 'o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.' - 'Você só precisa mudar de direção', disse o gato e devorou-o."
("Pequena fábula", Narrativas do espólio [1914-24])
Para ir além
Julio Daio Borges
São Paulo,
23/8/2002
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