"Se na África você não se sentir louco a
maior parte do tempo, então você é louco de
verdade". Com essa frase, Ernest Hemingway consegue resumir a
sua relação com o meio ambiente selvagem e, ao mesmo
tempo, acolhedor do grande continente. Em meio a rifles, caçadas
e leões, Hemingway cria a memória ficcional de seu
último safári.
O livro Verdade ao amanhecer, apesar de girar ao redor do
tema recorrente da morte, mostra um otimismo frente ao mundo que o
autor evitou em outros momentos (tanto na literatura como na sua vida
particular). Talvez por isso, o livro, escrito em 1953, só
tenha sido publicado 46 anos depois, em 1999.
Totalmente a vontade em um acampamento no Quênia (na época
colônia britânica), Hemingway e sua quarta esposa, Mary,
ficam responsáveis por uma extensa área de caça.
E é em torno desta atividade, por isso a recorrência da
morte, que gira o dia-a-dia do autor.
Em nenhum momento, Hemingway abre mão de um fino senso de
humor que torna a narrativa única, se compararmos com as suas
outras obras "aventureiras", como O velho e o mar ou
Por quem os sinos dobram. Este humor pode ser encontrado em
momentos tão diferentes como na relação do autor
com as diferentes tribos africanas que vivem na região, com
sua esposa e uma namorada local ou com os animais, importantes
coadjuvantes.
A história inicia com Hemingway sendo "empossado"
no cargo de Bwana da Caça da região. Mais do que um
funcionário colonial, Hemingway descobre que sua obrigação
é cuidar para que tudo funcione perfeitamente, incluindo, em
suas tarefas, o cuidado com as pessoas que vivem no local. Logo
descobrirá as tensões entre diferentes tribos e os
aspectos maléficos que a entrada da civilização
causa entre os nativos.
Sem tornar-se panfletário, Hemingway mostra o problema da
bebida entre os africanos e as mudanças que são
impostas, na maioria das vezes, de forma artificial. Ele usa de humor
e ironia para tratar destes temas. Isso pode ser visto principalmente
na sua narrativa sobre a religião. Sem esconder uma certa
tensão entre os cultos nativos, a religião muçulmana
professada por muitos e o cristianismo trazido pelos colonizadores,
Hemingway conta, divertido, como criou uma nova religião onde
ele próprio era o profeta. O fato de, no livro inteiro, esta
criação religiosa ser citada algumas poucas vezes,
torna o fato mais instingante e divertido, dando um toque surreal à
situação. É inevitável pensar, como teria
ficado aquela gente toda, quando o escritor foi embora. Estarão
ainda esperando a volta do profeta branco?
Mas a relação mais espirituosa e interessante de
todo o livro é justamente com a esposa Mary, a única
pessoa branca a permanecer o tempo todo com o autor. Na verdade, a
história do livro é, basicamente, a luta de Mary contra
um grande leão. A preparação, as lendas criadas
e a caçada que resulta na morte do chamado rei das selvas são
contadas de forma simples e clara por Hemingway. A tensão
criada em torno deste episódio ganha um colorido especial com
a postura de Mary após a grande caçada e a resposta de
Hemingway. Novamente, o humor ressurge depois dos momentos mais
dramáticos.
Usando imagens simples de uma caçada e esta ironia
onipresente, Hemingway é capaz de discutir temas sérios
como a obsessão e o vazio decorrente. E também o amor,
contando a relação com uma jovem nativa apaixonada.
Hemingway chega a cogitar tomá-la como segunda esposa,
conforme os costumes locais. Mais um dos pontos onde nunca será
possível separar a ficção da realidade. A
infidelidade é contada de uma forma singela. Também é
dessa forma que os abalos que essa relação
extra-conjugal trazem ao seu casamento são contados.
Existe também mais um personagem que sempre é muito
caro a Hemingway: a natureza. As descrições das
paisagens e dos animais criam um interessante quadro da região
e explicam a paixão que a África despertou no casal.
Mesmo quando caça, a descrição mostra uma
importante reverência ao animal. Em alguns momentos, a
narrativa toma ares de cerimônia, como se os animais abatidos
fossem sacrifícios dedicados ao deus da religião
fictícia que Hemingway criou. Gostando ou não de
caçadas, aprovando ou reprovando este chamado esporte
(questionamentos que o próprio autor faz), é impossível
não sentir a emoção na narrativa.
Verdade ao amanhecer foi lançado no centenário
do nascimento de Ernest Hemingway e repercutiu favoravelmente no
mundo inteiro. Um fecho de ouro para o vencedor do Prêmio Nobel
de Literatura de 1954.
Para ir além