COLUNAS
Quinta-feira,
19/9/2002
Lavoura da discórdia
Lucas Rodrigues Pires
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Li este título em alguma resenha quando do lançamento de Lavoura Arcaica nos cinemas paulistanos. Resolvi emprestá-lo para minha coluna porque casa perfeitamente com o assunto do qual irei tratar.
A maior decepção da noite de entrega do Grande Prêmio BR de Cinema Brasileiro, apelidado de o Oscar brasileiro, realizada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 12 de setembro, foi a veemente (e vexatória) ignorada que o prêmio deu para Lavoura Arcaica. Perto deste, Bicho de Sete Cabeças, o vencedor da noite com sete prêmios, se transforma num adolescente abobado diante da mulher mais velha e experiente na hora do sexo...
Concordo que Bicho de Sete Cabeças seja um puta filme, dos melhores (entre nacionais e estrangeiros) do ano passado. Ele tem qualidades que o legitimariam a receber os principais prêmios se não fosse um único porém - concorrer com Lavoura Arcaica, a genial fita de Luiz Fernando Carvalho. Mas como nem sempre ganha o melhor...
Foram 16 prêmios entregues no total, incluindo aí filme estrangeiro (o mexicano Amores Brutos levou), curta-metragem nacional [Meu Compadre Zé Ketti, de Nelson Pereira dos Santos, que ganhou mais por sua obra e nome do que pelo curta em si; nesta categoria havia excelentes e criativas obras, como Palíndromo e Palace II (filhote de Fernando Meirelles para Cidade de Deus), mas enfim...] e documentário (prêmio mais que marmelada para Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho). Basicamente todos os prêmios foram dados aos melhores, com exceção dos que Lavoura Arcaica merecia indiscutivelmente ganhar, mas acabou não levando - filme e direção. Montagem e trilha sonora, que ficou com Bicho, também caberiam bem nas mãos de Luiz Fernando Carvalho e cia.
O que explicaria essa omissão, ainda mais se contarmos que todas as indicações de Lavoura Arcaica recebiam muito mais aplausos dos presentes na festa e era, nitidamente, o preferido do público?
Um dos motivos pode ser a grande simpatia com que Bicho foi recebido pela crítica na época de seu lançamento. Além disso, o fato de ter atraído 400 mil pessoas aos cinemas não pode ser esquecido. Como os integrantes da Academia falam em prol de uma "indústria cinematográfica nacional", e a Ancine está aí pra viabilizar isso, nada melhor do que um filme bastante assistido levar o prêmio principal... Não se pode esquecer que a distribuição de Bicho foi feita pela Columbia TriStar, major que tem em seu currículo os maiores sucessos nacionais de público da retomada (O Auto da Compadecida, A Partilha, Eu Tu Eles etc). Premia-lo poderia ser uma forma de o cinema brasileiro agradecer-lhe os "serviços prestados" e dar incentivo para continuar a apostar na produção nacional, que voltou a perder espaço em 2002. Atitude canhestra essa, se for a versão mais próxima da verdade. Dá até pra apostar num lobby fortíssimo da Columbia junto aos votantes e organização para fazer de Bicho o melhor. Soma-se a tudo isso o fato de a diretora Laís Bodanzki fazer parte do conselho deliberativo da Academia Brasileira de Cinema, que é a organização cujos sócios votaram nos melhores do ano. Não quero dizer que isso foi determinante para a eleição de Bicho, mas alguma influência sempre deve ter ocorrido, ainda mais em se tratando de um setor em que as palavras "panela" e "máfia" são muito usadas nos bastidores. Cinema no Brasil é para poucos. Se não se consegue entrar para o clube, morre-se na praia. Aí pode estar o germe de tudo...
Lavoura Arcaica foi distribuído pela Riofilme, distribuidora 100% nacional mas sem expressão no mercado. Ela distribui a maior parte dos filmes brasileiros, praticamente aqueles que não teriam "espaço" com o brasileiro médio e que não interessam às grandes distribuidoras lançar comercialmente. Mesmo com essa menor força no mercado, Lavoura Arcaica fez quase 150 mil pessoas, e com 6 cópias no mercado. Proporcionalmente, foi o maior sucesso de público de um filme nacional em anos. Sem contar que tem 163 minutos enquanto Bicho tem 85 minutos...
A contar por essa premiação, se houver uma no ano que vem, já é possível prevermos que Cidade de Deus será o grande vencedor, deixando pra trás Abril Despedaçado, o belo trabalho de Walter Salles. Anotem aí e me cobrem depois...
Lavoura "carvalhesca"
Luiz Fernando Carvalho, diretor de novelas e minisséries da Rede Globo, realizou um épico poético de imagens com a obra de Raduan Nassar. Transformou a arte da palavra em arte com imagens, fazendo de Lavoura Arcaica um filme que muitos consideram dos melhores já feitos pelo cinema brasileiro. Seu estilo de filmar prioriza o ser, seu âmago, transforma o homem num emaranhado de contradições (o que ele realmente é) e não apenas no estereótipo reducionista a que estamos cansados de ver. O texto de Nassar, a história do jovem André e seus dilemas frente à família encontraram morada certa no talento de L.F. Carvalho. O tema central da obra - o tempo e seus alicerces humanos - se volta absorto em poesia, na leveza das imagens, no contraste da fotografia, na delicadeza das atuações que se prendem nos detalhes para entender o todo. Cada gesto, cada palavra narrada, cada olhar e cada tomada de câmera influem na narrativa, no desenrolar de uma trajetória agoniada como a de André. O pai austero, a mãe sufocante de amor, a irmã cativante sexualmente, o irmão severo e filhote do arcaísmo do pai, a ambigüidade do irmão caçula e o silêncio das demais irmãs esparramam vida, tristeza, angústia, paixão e intensidade dramática num mínimo ser humano - insignificante perante o mundo - mas gigante e único em seu abismo interior. A história rende-se a ele, André, "o fruto podre da árvore", menino dividido, fragmentado de vida empírica, recluso às grades impostas pelo pai. O Pai - com p maiúsculo mesmo, presente, onipresente, onisciente, aparece-lhe como a máxima figura e autoridade. E a revolta contra ele é tragada, consumida no silêncio e frescor da terra úmida e amanhecida pelo orvalho. Só lá o pequeno André encontrava moradia certa, terna e compreensível a um coração desfigurado e sem identidade.
Lavoura Arcaica demonstra que o tempo é hegemônico. Domina o ser humano sem nenhum esforço por uma simples razão: se sabe superior, implacável a tudo e a todos; quem se atreve a cruzar seu caminho será devastado com enorme crueldade e exatidão. O tempo transforma a vida e a morte, desgasta continentes, condiciona valores, sepulta títulos. O homem só tem um destino frente a ele: a derrota. A cada um de nós resta a conformação diante de seu poder - aceitá-lo e conviver com suas garras a todo instante. A Academia Brasileira de Cinema não entendeu isso. Mas o tempo, como diz a sapiência arcaica do pai, dará a justa medida das coisas. Lavoura Arcaica é grandioso, duvido mesmo que o tempo seja capaz de consumi-lo.
Abaixo, todos os premiados no Grande Prêmio BR de Cinema Brasileiro. Em tempo, Bicho está disponível em DVD e Lavoura Arcaica sairá em janeiro.
Filme
Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzki
Documentário
Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho
Direção
Laís Bodanzki, por Bicho de Sete Cabeças
Ator
Rodrigo Santoro, por Bicho de Sete Cabeças
Atriz
Juliana Carneiro da Cunha, por Lavoura Arcaica
Ator Coadjuvante
Othon Bastos, por Bicho de Sete Cabeças
Atriz Coadjuvante
Laura Cardoso, por Copacabana
Fotografia
Walter Carvalho, por Lavoura Arcaica
Roteiro
Luiz Bolognesi, por Bicho de Sete Cabeças
Trilha sonora
André Abujamra, por Bicho de Sete Cabeças
Montagem
Jacopo Quadri e Letizia Caudullo, por Bicho de Sete Cabeças
Direção de arte
Marcos Flaksman, por O Xangô de Baker Street
Som direto e Edição de som
O Xangô de Baker Street
Filme estrangeiro
Amores Brutos (México), de Alejandro Gonzalez Inarritú
Curta-metragem
Meu Compadre Zé Ketti, de Nelson Pereira dos Santos
Lucas Rodrigues Pires
São Paulo,
19/9/2002
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