A relação entre crise econômica, social ou política, e criação artística ainda precisa ser mais bem estudada. Este tema poderia render diversas teses acadêmicas. E, além da própria situação brasileira, algum pesquisador deveria se dedicar ao que acontece na Argentina. No meio da maior crise da história do país, há um interessante desenvolvimento cultural, principalmente no cinema.
Na literatura, nossos vizinhos nos presenteiam com uma grata surpresa, César Aira. A editora Iluminuras está lançando no Brasil o livro de crônicas "A trombeta de vime", pequeno volume que reúne textos produzidos no ano de 1995. É só uma pequena amostra da obra excepcional de Aira que, além disso, é tremendamente prolífico. Escreveu cerca de 30 romances, recebendo prêmios em vários países de língua espanhola. Seu romance "Como me hice monja" foi considerado um dos dez melhores livros publicados na Espanha.
Devemos lembrar que na época em que estes textos foram escritos, a Argentina ainda nem sonhava em passar pela crise que hoje enfrenta, apesar de os elementos para a explosão de 2001 estarem todos no subsolo. Em "Trombeta de vime", Aira usa de elementos modernos para fazer diversas reflexões sobre a sociedade atual.
Pode ser um ensaio sobre o Cubismo, uma discussão sobre o papel do escritor ou uma crítica à falta de originalidade na televisão, nada disso importa. Em todos eles, haverá uma abordagem diferente. Aira pode partir de algum assunto que não lembre o menor resquício do tema principal da crônica ou talvez ele lance mão de suas memórias infantis. A verdade é que ele sempre surpreende.
Logo no início do livro, tomamos um choque. Começando com uma fantasia erótica comum a todos os homens, Aira faz a ligação tênue com o Cubismo de Braque e Picasso. Segundo o autor, todo homem tem a fantasia de encontrar, casualmente, uma mulher linda e maravilhosa que, sem rodeios e meias-palavras, queira se entregar a ele, naquele momento e lugar. São esses pontos obscuros, também chamados de fantasias, que fazem a ligação com a "segunda parte" do artigo.
Na crônica "Tive a sorte" (a maioria das crônicas não foram tituladas), todos são transportados de volta às antigas HQs (será que alguém aqui se lembra do Gibi?) e ao clássico personagem do Mandrake. O objetivo é mostrar a psicologia do Escritor. Por causa da mistura de paixão e ironia, não dá para saber se Aira quer mostrá-los como pessoas sensíveis ou tolas. Ou talvez não haja grandes distâncias entre os dois.
Mas a crônica sobre a TV supera todas as outras. Tanto pelo tema como pela narrativa densa. Um programa de televisão baseado nas velhas séries de super-heróis (cujo maniqueísmo, reciclado ou não, aparece em qualquer filme hollywoodiano), mas que dura 60 minutos em tempo real e que tem como ponto alto os pensamentos dos dois adversários (o vilão que quer dominar/destruir o mundo e o herói que trabalha em prol da humanidade), presos numa nuvem de paralisia.
A linguagem pop não quer dizer que os temas sejam superficiais (aliás, quem ainda sustenta esse preconceito?) como nos mostra O Espião. Com um texto que beira o surrealismo, Aira mistura realidade e ficção, primeiro discutindo a privacidade do ator de teatro, sempre cercado por três paredes. Depois, em mudanças ambientais delirantes, parte para uma história onde ele mesmo é o personagem com uma vida dupla (tripla, se contarmos o próprio narrador) no meio do "reinado" menemista.
Esta coleção de crônicas de César Aira pode causar mais mal do que bem, porque causam dependência. Estaremos esperando, agora, mais lançamentos e, como já falei, o que não falta é livro de Aira para ser traduzido.
Para ir além
A trombeta de vime
César Aira
126 páginas
Iluminuras