COLUNAS
Quarta-feira,
2/10/2002
Carta aos Amigos
Rennata Airoldi
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Caros Amigos,
(Aqui, tudo que não foi dito sobre a "II Mostra de Teatro 'Cemitério de Automóveis'" e que você não lerá em nenhum outro lugar. Um breve depoimento sobre a arte, o desafio e a loucura...)
Uma convocação! O primeiro encontro, numa sala de cinema, onde todos forneciam dados e assinavam documentos. Parecia um recrutamento, só que mais excitante. Um projeto fenomenal de uma proporção avassaladora e muitos rostos atentos às explicações que eram dadas. Sentados em uma grande platéia, éramos todos ali espectadores de um futuro que se desprenderia de nós mesmos, se desdobrando num presente imediato, semanas depois... Mensagens via Internet, distribuição de personagens, textos, dias da semana. Um grande quebra-cabeça que foi minuciosamente montado e que, aos poucos, se transformaria numa longa e deliciosa rotina. Cheia de surpresas e pequenos obstáculos que o acaso colocaria no caminho durante a jornada. Um ator que não pode comparecer, outro que consegue um trabalho repentino, enfim, substituições imediatas. Mudança em algumas das cartas, mas nada que impossibilitasse que cada uma das peças fosse ganhando vida, pouco a pouco.
Quase três longos meses. Vinte seis peças. Setenta e nove atores. Um desejo indescritível de respirar Teatro vinte quatro horas por dia. Desde o dia 9 de julho, todos foram chegando, unindo-se para a produção da maior Mostra de Teatro da cidade de São Paulo: a "II Mostra de Teatro 'Cemitério de Automóveis'". Como ratos: atores, técnicos, amigos, camaradas, foram se mudando para o Porão. Um lugar úmido, frio, escuro que foi se transformando na nossa casa... Quem diria que abrigaria tantas pessoas durante um tempo tão curto!
Tudo era uma grande novidade. Uma grande festa. Quem já se conhecia se reencontrava para uma nova temporada. Quem não conhecia ninguém tinha a chance de conquistar novas amizades. Conforme os ensaios eram marcados, os atores que contracenariam nas inúmeras cenas de todas as peças, iam se juntando. Perguntas como: "Você faz essa peça?"; "Ah, aquela outra a gente faz junto!"; "Você sabe quem é o fulano que faz esse personagem?" - estavam presentes a todo o momento e, desta forma, o grande quebra-cabeça foi sendo desvendado. Tudo isso aconteceu "meio no susto", durante as duas enlouquecidas semanas em que estrearam a maioria das peças.
Então, como era de se esperar, as afinidades foram surgindo. As noites eram longas no Bar Cultura, onde discutíamos as peças, nos conhecíamos melhor, enquanto tomávamos mais uma cerveja - ou um conhaque com mel e limão! (O drink que foi "hit" da Mostra.) A euforia tomava conta de cada um de nós, e a vontade de estar ali no Porão, por incrível que pareça, era imensa. Sair, voltar, sair de novo. Ansiedade e adrenalina. Quanto mais próximos das estréias, mais novidades iam surgindo. Até que, na véspera, todos haviam chegado. Ufa! Pronto. Era apertar os cintos e começar a viagem, ou ainda: embarcar nessa nau desvairada, comandada por Mário Bortolotto. E lá fomos nós!
Estréia, estréia, estréia. Era peça que não acabava mais. Assim, sem nos darmos conta, já estavam em temporada todos os espetáculos! No susto, na euforia, no momento. Ia como dava para ir. Sem tempo para perguntas cruciais ou dúvidas existenciais. E então, nos apaixonamos profundamente por nossos parceiros de cena, por nossos personagens e pseudo-personagens, por nossas mais breves passagens em cena. Simplesmente o prazer de estar ali, usufruindo de tanto aprendizado. Sendo um pequeno, mas importante, grão de areia que compunha a grande duna! Nos apaixonamos pela idéia de viver ali, só de teatro, e de transformar a vida num universo paralelo. Isso transformou um pobre porão em mil mundos. Ah, se não fosse a necessidade básica de todo o ser humano de comer, beber, morar e pagar as contas...
Porém, tentando esquecer tudo que nos prende ao chão, nos desdobramos em mil. E nisso, haja paixão! Haja coração! Muitos espectadores se tornaram freqüentadores assíduos, como o Tom Capri, que comparecia a todas as sessões com toda a família! Nos acostumamos a nos encontrar todos os dias para viver mais uma breve história. E assim aprendemos a respeitar o trabalho de muitos e admirar o imenso talento de outros. Um grande encontro de almas. Todos no mesmo barco.
Claro que o tempo e a convivência trazem à tona o stress, os desentendimentos, o cansaço, as desavenças. Como em qualquer lugar onde há muitas pessoas reunidas o tempo todo. Diferenças que, por um breve momento, tornam-se insuportáveis, ou afinidades que se tornaram grandes paixões... É assim que somos, todos nós, seres humanos, independentemente de profissão, raça, idade, crença. Apesar de nem tudo ser um "mar de rosas", o importante era não deixar a peteca cair pois show tem sempre de continuar!
(Acredito que esse depoimento pode soar estranho para aqueles que não conhecem o ofício do ator. Tentarei assim, tornar mais lúcida a nossa sutil loucura...) Nós atores, entregamos nossas almas, trocamos confidências, somos amigos inseparáveis durante a temporada de uma peça. Ainda que surjam problemas, alguns desencantos... Uns amadurecem e outros se desinteressam. A vida é assim mesmo. Mas, quero chegar na questão fundamental que é: continuamos sendo sempre mambembes, nômades, errantes. Estamos sempre buscando um novo lar. Uma nova margem de rio para plantar, semear e, depois da chuva, colher. Esta é a nossa verdade.
Assim, aquilo que parecia não ter fim... acabou. Então, sem que pudéssemos evitar, fomos nos despedindo, pouco a pouco. Peça por peça. Aplauso por aplauso. Até o último suspiro. Até silenciar o eco de todas as almas que pairaram ali no porão, tornando esta Mostra a maior do ano. Depois de tudo isso, depois das últimas palmas, apagaram-se as luzes. Fechou-se a porta. E o lugar mágico que abrigou tantas histórias e personagens, voltou a ser um simples porão: frio, úmido e escuro. Apenas ratos felizes, voltaram a circular em paz.
Quanto a nós, a última cerveja, os últimos abraços apertados e "TCHAU, a gente se vê!". Muitos de nós não se encontrarão por um bom tempo. Alguns se tornarão grandes amigos, outros estarão juntos numa nova casa, com uma nova história para contar. É assim mesmo. Apagam-se as luzes aqui, para que um outro foco possa iluminar o porvir, a próxima cena!
A todos vocês, caros amigos, muita "merda"!
Rennata Airoldi
São Paulo,
2/10/2002
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