COLUNAS
Segunda-feira,
7/10/2002
Ronald e Donizete: Falência Múltipla dos Autômatos
Jardel Dias Cavalcanti
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"A anomia é a sombra da solidariedade orgânica." (Baudrillard)
O corpo é o leitmotiv do novo livro de poesia "Pelo Corpo", que reúne Donizete Galvão e Ronald Polito numa publicação da Alpharrabio Livraria e Editora. São 28 poemas que podem ser lidos na clave dessa "máquina orgânica". Os dois poetas estão convencidos de que o corpo é um trambolho-máquina ou, se não, tornou-se isso. E essa máquina é habitada pela prótese-vazio, pela prótese-insignificância, que torna todas as trocas a que se submete satelizadas por sinais anódinos.
É estranho e extraordinário que exista, nesse momento, um livro de poesia centrado neste tema - num momento onde as pessoas buscam para seus corpos "não a saúde, que é um estado de equilíbrio orgânico, mas um brilho efêmero, higiênico e publicitário do corpo, bem mais uma performance do que o estado ideal. Já nem é narcisismo, é extraversão sem profundidade, um tipo de ingenuidade publicitária em que cada um torna-se empresário da própria aparência". (Baudrillard).
Num momento como esse, dois poetas se reúnem para compor a falência múltipla desses autômatos-corpos. E o primeiro poema do livro, escrito por Donizete, já nos anuncia o tom de todo o livro, conceituando o corpo como essa "vida secreta que se abre e apodrece no mesmo instante".
De uma forma geral, os poemas produzem um efeito de terribilità. Isso porque os corpos que se desenham aqui estão muito próximos das figuras criadas por Giacometti ou pelo descarnado "Cristo no Sepulcro" (Museu da Basiléia), de H. Holbein. Mais perto da obra destes artistas do que da imagem dos inúteis, operacionais e malhados corpos da contemporaneidade.
O corpo vai se definindo a cada poema como "camadas de entulhos" e "estragos troços", nas poesias de Polito. Os poemas e os dois autores se reverberam: produzem por isso, intencionalmente, versos leucêmicos, caquéticos - claro, movidos por uma energia maldita que os alimenta insanamente.
No caso de Polito, o estrago é maior. Aqui, como dizia Hegel, estamos em cheio "na vida, movente em si, daquilo que está morto". O poema "Espécie em extinção" nos fala desse corpo "funcionando de modo tão bem maquinal" que "pode por inteiro ser um animal sem alma./ e quase matar/ e quase morrer." Num poema final, sua "exegese parcial" (já que tudo aqui é fragmentado), admite: "o corpo é uma cruz" - ou seja, algo que é doloroso trazer consigo. Mais ainda, num salto suicida, o corpo "estimula" seu próprio ocaso ao se desmembrar em "cacos da colisão".
Assim, o corpo, como matéria auto-viral e máquina vencida, se deprecia na poesia de Galvão: "De hoje em diante/ a máquina imperfeita/ de teus músculos/ será mais um objeto/ em desuso." A relação com Giacometti se estreita num anúncio metafísico-crítico fatal: "corpos sem encarnação", "sem entranhas", "corpos como um traço,/ um risco de carvão". Menos que isso, indefinível, Polito encerra o livro com a sentença final: "o corpo é um x".
São inúmeras as referências à mecanicidade calcinada e desastrosa do corpo, como em "Irradiação", de Polito, onde "dentro da perna mecânica ainda bate/ uma veia com dano. Cicatriz." Mais estridente, a mecanicidade ressurge total no poema "Enjambement", também de Polito.
O corpo, em sua trágica e fraca energia, supermultiplicada pela inércia, quase não resiste à força da ação da cidade sobre ele. Depois do poema "A cidade no corpo", de Galvão, podemos dizer que é um milagre que tudo recomece no dia seguinte. Mas como sabemos, os especialistas que só computam os dados quantitativos de um sistema energético subestimam essa fonte de energia que é seu próprio gasto. Mas ao livro esse dado não escapa, ao contrário, funda-se toda uma teoria a esse respeito no poema "Carga", de Polito.
Sintetizando, através de alguns versos de Polito e Galvão, podemos dizer que o corpo é uma máquina imperfeita, se não, uma morte que nasceu... com sua "quota de vácuo". Os poemas atestam esse ignóbil furor que é a sobrevivência alimentada pelo seu próprio transbordamento - em direção a uma curva estranha - a catástrofe.
Em meio a tanta negatividade (já que não há poema nesse livro que não dê morada à idéia de uma superexcitação fatal que é o existir físico) emerge, em meio ao violento esquartejamento do corpo, no poema "Órfico", de Galvão, um canto de esperança que parece dizer que disso tudo o que se salva é o fazer poético: "a cabeça/ separada/ do corpo/ ainda canta/ vale uma vida/ vale uma morte/ esse hino".
Existe um texto de Jean Genet sobre Giacometti que talvez explique o sentido deste livro de Galvão e Polito: "A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. A arte parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine".
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas,
7/10/2002
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