COLUNAS
Terça-feira,
8/10/2002
Um breve testamento literário
Mariana Ianelli
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"Para mim, a literatura é um segmento da minha vida, não é de
jeito nenhum o centro. Isso deve parecer desconcertante,
porque afinal escrevi 14 livros...É que a literatura é uma
vocação mas também uma facilidade, porque não tenho razões
para me jactar de escrever bem." (Julio Cortázar em O
fascínio das palavras; pág.174)
Cerca de três meses antes de morrer, Julio Cortázar ainda
poderia ser visto à porta do seu apartamento saudando o amigo
jornalista Omar Prego e levando-o até o seu escritório para
que uma última entrevista se realizasse, embora sem o fôlego
de outras vezes.
Conforme o combinado em 1982, eles se reuniriam durante duas
ou três horas, em ocasiões variadas, para conversar sobre
grandes temas de literatura e de política latino-americanas
que se vinculassem especialmente ao universo pessoal de
Cortázar. Mas a morte do escritor, em janeiro de 84, deixaria
todo o material das entrevistas de Omar Prego silencioso,
embora já pronto a dar em um livro, O fascínio das palavras,
cujo teor, rico e singular, havia sido planejado a dois.
A ternura de pequenos hábitos adquiridos apenas abandonou
Cortázar na época da sua internação no hospital Saint-Lazare,
onde os dias se passaram sem ânimo. No entanto, a boa música,
a influência enigmática dos astros e o pressentimento de um
novo romance em formação, que provavelmente viria prorromper
em mais uma tormenta de criatividade foram os prazeres que
Omar Prego lembra ter reconhecido em Cortázar sempre que lhe
fazia as visitas.
Ordenado por assuntos principais, o livro guarda a
possibilidade de um regresso imaginário e bem pausado aos
encontros entre Omar Prego e Cortázar, quando os dois
confabulavam longamente sobre o poder encantatório das
palavras e os territórios obscuros que há dentro da própria
vida humana.
Desde muito pequeno, por desconfiar da maneira como lhe
apresentavam a realidade, o menino Cortázar enveredou na
construção do seu mundo infantil e o fez com tamanha
vivacidade que, aos nove anos, ele já havia escrito
um "romance".
Foi a leitura de livros românticos, emprestados de
sua mãe, que levou Cortázar à solidão. Enquanto se afastava
da família, "por incompatibilidade de sonhos", ele começou a
brincar com o idioma, descobrindo a magia dos palíndromos,
explorando a dimensão fantástica da vida que existia nos
romances disfarçada em simples vocabulário.
A compreensão de como penetrar na literatura de alta
qualidade, Cortázar alcançou-a a partir de uma inclinação
mais apaixonada do que intelectual por aquilo que ele mesmo
denominava de um "mundo paralelo", constituído pelas "leis da
noite", estas que regiam a lógica dos acontecimentos
cotidianos por meio de um encadeamento constelar de fatos.
No conjunto dos seus contos, romances e poemas, um registro
de lições aprendidas está por ser revelado, e isso o leitor
percebe nas perguntas brilhantes de Omar Prego a Cortázar.
Lições de concisão, que o escritor detivera da sua vivência
com Borges, inimigo feroz das "adjetivações inúteis"; lições de
ritmo, que, assimiladas através da música, ajudaram Cortázar
a compor "a eufonia dos seus desenhos sintáticos"; lições de
fantasia, que ele retirava de dentro dos seus pesadelos e
transportava à linguagem onírica da poesia.
Outras lições também não devem ser desprezadas : a
consciência política gerada pela Revolução Cubana, que não se
transformou apenas em matéria para alguns contos valiosos de
Cortázar, como Graffiti e Reunião, mas ainda reafirmou a
opinião do escritor quanto à necessidade de que a ficção
latino-americana se volte aos seus próprios dramas
históricos; o silêncio exterior da noite em Paris e a ligação
intrínseca com Buenos Aires, duas condições quase
fundamentais para que Cortázar houvesse se entregado com
plena liberdade "ao impulso da idéia inicial" de um texto.
O relato das suas manias íntimas por boxe ou
vampirismo, seus "terrores sobrenaturais", suas preferências
literárias não valeriam ser transmitidas senão pela voz do
próprio artista, porque nada comprova com mais precisão os
caminhos do seu processo criativo do que o conjunto de seus
depoimentos reunidos na obra de Omar Prego. Ali, é possível
se espantar com a força de uma paixão pela vida que destinou
um escritor à eternidade dos seus leitores futuros por nenhum
motivo que tivesse sido tão denso quanto uma vocação, uma
puríssima vocação de espírito.
Mariana Ianelli
São Paulo,
8/10/2002
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