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Quarta-feira, 6/6/2001
Confissão da miserabilidade gastronômica
Paulo Polzonoff Jr
+ de 3200 Acessos

Confesso minha total ignorância em se tratando de paladar. Não faço mea culpa, porém. Venho de uma família culturalmente pobre, que jamais me educou para as artes da mesa. Para eles, comida boa era comida farta, não importando nada desse troço de "sabor". Curiosamente, tenho um tio hoje no ostracismo familiar - como eu - que era um verdadeiro chef, sem jamais saber disso. Sabia fazer pratos maravilhosos, inventivos e, seguindo a tradição da família, fartos. Lembro-me de suas pizzas; na verdade sinto saudades delas: eram simplesmente luxuriantes em seus recheios.

Ao mesmo tempo em que éramos pobres culturalmente, vivíamos, nos anos 80, algum tipo de glória econômica. Obviamente que não falo isso para me gabar, até mesmo porque a pecha de novo-rico me cairia bem depois da sentença anterior. Apenas digo isto para situá-los no contexto daqueles que, como eu, são verdadeiros analfabetos gastronômicos. A significativa bonança na conta bancária não trouxe cultura a meus pais, mas me deu dores de cabeça que hoje recordo, por causa deste texto. Como ser discriminado por primos, tios, tias e avós por não gostar de certas coisas, por evitar algumas comidas que ao meu paladar latente não agradavam.

Deve haver alguma teoria que relaciona Freud à comida. Eu fui reprimido gastronomicamente. Não é à toa que escrevo sobre um prato ordinário, apesar de sua importância simbólica para o País: o arroz-com-feijão.

Antes de entrar no arroz-com-feijão propriamente dito, preciso dizer que a repressão me impulsiona a discutir os aspectos da repressão gastronômica num país de - não me deixam esquecer! - miseráveis. Há algum tempo uma leitora escreveu dizendo que era um verdadeiro insulto discutir livros e filmes num país onde as pessoas passavam fome, onde os políticos roubavam, onde as crianças morriam de doenças pré-históricas, et coetera. Não defendo a leitora, de modo algum, até porque livros e filmes fazem parte de algo muito mais amplo, educação, tão essencial para o país quanto comida.

Chegamos, aqui, a um ponto nevrálgico (lugares-comuns: tão cômodos, não?): comida é ou não cultura? Se for cultura - e eu acredito que seja -, comida é mais importante para o país em questão, seja ele o Brasil, a Etiópia ou a França, como cultura ou como fonte de proteínas, carboidratos e demais componentes que esqueci das aulas de biologia?

O arroz-e-feijão entra nesta parte da história porque encaixa-se em qualquer das escolhas que o leitor fizer no parágrafo anterior. Se o leitor achar que comida não é cultura, ótimo, coma arroz-com-feijão e terá uma ótima refeição, apreciada pelas pessoas ao seu redor como uma comida saborosa e nutritiva; se o leitor achar que sim, comida é cultura, perceberá certa beleza estética no arroz-com-feijão e poderá fazer incríveis viagens ao oriente e também incursões pelo passado que lhe proporcionarão um conhecimento adicional sobre a escravidão no Brasil e outros problemas que afligem, de certo modo até hoje, o País.

Uma explicação técnica, muito menos interessante, mas necessária, explica o sucesso do arroz-com-feijão no Brasil. Primeiro, há o fator econômico. A comida é de origem vegetal e, por isso, barata. Além disso, é extremamente nutritiva. A saber: o feijão é rico em uma proteína chamada lisina e o arroz em metionina. As duas juntas dão uma refeição praticamente perfeita, como me explica uma nutricionista amiga minha com cara de entediada. Continua ela dizendo que feijão faz parte dos alimentos construtores, contendo proteínas, sais minerais a vitamina do complexo B. Entre os minerais encontrados no feijão, o ferro é de maior importância, já que apresenta um elemento primordial para a formação sangüínea. Cada 250g de feijão cozido é capaz de fornecer, a uma pessoa normal, metade do ferro que o organismo necessita receber em um dia, suprindo 20% das bases protéicas. Sua casca é rica em celulose, substância indispensável ao bom funcionamento do trato gastrointestinal.

Satisfeitos nosso apetite de cientificismo barato (mea culpa), vamos ao que interessa: o feijão-com-arroz como cultura. Se você viajou pelo nordeste, deve conhecer o baião-de-dois, variedade do prato brasileiro por excelência. Amiga minha explica que o baião-de-dois é, basicamente, feijão e arroz cozidos juntos. Ao sul, temos uma variedade maravilhosa do prato que é o feijão tropeiro com arroz carreteiro. Apesar de certa distância na linha do tempo entre os dois pratos, pode-se pensar que eles representam, a um só tempo, nosso atraso econômico. Afinal, até meados deste mal acabado século XX, os bois eram levados por tropeiros de uma fazenda a outra, em viagens infindáveis: daí o feijão tropeiro. O arroz carreteiro, como o próprio nome diz, foi um aprimoramento do arroz tradicional criado pelos homens que passam às vezes meses nas estradas do País, levando, muitas vezes, arroz e feijão para as grandes cidades.

Não há como pensar em arroz-com-feijão, entretanto, sem pensar na magnifica, esplendorosa, suculenta, divina - e outros adjetivos mais - feijoada. Reza a lenda, na qual eu acredito piamente, até porque não conheço versão melhor, que a feijoada foi criada pelos escravos que recolhiam o que não era aproveitado do porco pelos seus senhores, misturavam estes "restos" ao feijão e... tchan-tchan-tchan-tchan: lá estava aquele prato asqueroso na concepção, mas que viria a se tornar, mais tarde, não só símbolo de um Brasil (que eu julgo perdido), mas também verdadeiro ponto-de-encontro nos sábados por restaurantes afora.

Deve haver mais e mais variadas perdidas pelo território nacional, que ignoro.

Como disse no início deste texto, minha ignorância em se tratando de culinária é algo que até a mim mesmo surpreende. Para finalizar, conto uma historinha, que talvez ilustre bem não só a importância deste prato no imaginário do brasileiro, como também a sub-importância que damos à culinária, o que se deve a fatores meramente econômicos, penso, me sentindo um pouco culpado, como se a mim não fosse permitido pensar sobre o assunto.

Eu estava de viagem pela Europa, o paraíso gastronômico, como muitos apontam. Na França - logo lá! - estava na rua às duas da manhã, morrendo de fome. Na minha mochila, restos de um Big Mac e algumas batatas fritas espalhadas. Ou eu achava um lugar para comer ou teria de passar a noite com o estômago roncando, mesmo depois de ter comido as indefectíveis batatas fritas e o resto de Big Mac. Nada aberto. Nada que eu pudesse pagar. Já perto do hotel, sentei-me numa esquina e chorei de raiva por estar naquele país, longe do meu feijão-com-arroz. Quis fazer uma ligação para casa, para a Air France, para a Embaixada, para qualquer lugar que me proporcionasse um simples arroz-com-feijão àquela hora. Nada. Comi ali mesmo, na rua, as batatas duras e o Big Mac gorduroso. Tomei o resto de uma garrafa de vinho, o que me deixou meio bêbado e, por isso mesmo, menos desesperado. Faltava ainda mais de um mês para voltar para casa.

Sei que a história não é empolgante. Talvez porque diga respeito a um momento especialmente solitário, ou que pode ser compartilhado apenas por quem sentiu este banzo gastronômico em pleno Jardim du Luxemburg. De qualquer forma, meu pequeno conto-de-fadas tem final feliz: cheguei em casa e comi arroz-com-feijão durante uma tarde inteira, até cair no sono, com o estômago doendo uma dor alegre, de aconchego.

Ah, sim, antes que eu me esqueça. Alguns parágrafos acima, disse que via no arroz-com-feijão beleza estética, Não me engano. É uma composição perfeita entre grãos de grosso e fino calibre. O branco e preto combinam e destoam ao mesmo tempo. Mesmo ao mais glutão o prato parece bonito: ao elevar a comida vários centímetros acima do prato, constrói o guloso uma composição que se parece com o Everest ou algo parecido. Por aí, também, pode-se pensar em Freud e numa representação fálica da comida, como elemento dominador do homem, que por sua vez pensa que é dominado, etc. Aliás, cabe a mim perguntar: por quê nenhum pintor brasileiro se dignou a retratar o feijão-com-arroz e a beleza de sua dicotomia intrínseca?

Obs.: Odeio a palavra intrínseca.


Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 6/6/2001

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