COLUNAS
Terça-feira,
21/1/2003
A obra-prima de Raymond Chandler
Maurício Dias
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Se você gosta dos filmes noir de Billy Wilder e John Huston; se gosta de Tarantino e seu séqüito de imitadores; ou de filmes tão dispares quanto Blade Runner ou Los Angeles, Cidade Proibida, é melhor tratar de conhecer logo o pai da matéria, o homem que influenciou todos eles: o escritor americano Raymond Chandler (1888-1959), alguém capaz de agradar a nomes tão diversos quanto o crítico literário e escritor Edmund Wilson ou o roqueiro Lou Reed.
Chandler é quase que unanimemente tido como o maior autor da literatura policial. Na verdade, ele é bem mais que isso. Recentemente estive relendo O Longo Adeus (1953), seu melhor livro. A densidade, o humor e a ironia da obra me fizeram confirmar algo que há muito já desconfiava: com a possível exceção de William Faulkner, Chandler é o maior autor de romances americano do século XX. Com certeza é muito melhor que Hemingway, apesar de ter sido de certa forma influenciado pelos diálogos secos do autor de Os Assassinos e O Velho e o Mar.
O fato é que O Longo Adeus, mais ainda do que os demais livros de Chandler, não é bem um livro policial, mas um apanhado de observações sobre a sociedade americana entremeado por uma trama policialesca para agradar ao grande público. E especialmente neste livro, a trama policial funciona como uma argumentação a favor da lealdade, de sua grandeza moral, da necessidade dela como cimento da vida em sociedade. O personagem principal de todos os romances de Raymond Chandler, o detetive particular Philip Marlowe é um sir Galahad, que percorre desde a high society até os becos mais imundos com uma fé inabalável no seu dever de agir corretamente, ainda que sabendo que neste mundo tem-se que jogar duro. Este confronto de sua noção do que é certo contra sua acurada visão de mundo - pois Marlowe não é um imbecil, ele sabe onde vive - é a força motriz das suas muitas observações, recheadas quase sempre de uma certa amargura.
Magnífica é a descrição que o criador Chandler faz da criatura Marlowe em um ensaio que aqui foi publicado ao final da edição de A Simples Arte de Matar (L&PM Editores), coletânea de contos onde já se delineava algo do personagem Marlowe, embora ele ainda não fosse assim chamado: " ... nas ruas sórdidas da cidade grande precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixou abater e não tem medo. Neste tipo de história o detetive deve ser este homem. Ele é o herói; ele é tudo. (...) Não me interessa sua vida particular; ele não é nem um eunuco nem um sátiro; penso que ele poderia seduzir uma duquesa e tenho certeza de que não se aproveitaria de uma virgem; se é um homem honrado em uma coisa, é um homem honrado em todas as coisas".
E voltando a O Longo Adeus, a trama é complexa: tudo começa casualmente quando Philip Marlowe socorre Terry Lennox, um bêbado caído no estacionamento de uma boate. Inicia-se uma amizade, que será abruptamente terminada quando Lennox se envolve em problemas e Marlowe o ajuda a fugir para o México. Após o desfecho destra trama, aparentemente o livro recomeça do zero, e Marlowe vai trabalhar para um escritor alcoólatra. Mas as histórias acabam se interligando ao final, e mais que isso não posso contar.
A história, apesar de bem construída, não é o principal. A qualidade do texto em si é que impressiona. E como já disse no texto Escrita e Artes Visuais (publicado aqui no Digestivo), prefiro me calar diante da perfeição, deixar que ela fale por si mesma. Seguem trechos dos ótimos diálogos de O Longo Adeus, extraídos da edição - de bolso - que ainda pode ser encontrada nas livrarias, a da L&PM Pocket, com bela tradução de Flávio Moreira da Costa:
Dito por um multimilionário sexagenário:
"- ... Nós vivemos no que se chama de democracia, regida pela maioria do povo. Uma idéia ótima se chegasse a funcionar. O povo elege, mas são as máquinas partidárias que nomeiam, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, precisam de muito dinheiro. Alguém precisa dar este dinheiro a eles e este alguém, seja um indivíduo, um grupo financeiro, um sindicato ou o que você quiser, espera alguma coisa em troca." (...; pág. 252)
O mesmo multimilionário:
"- ... Não se pode esperar qualidade de pessoas cujas vidas são uma sujeição à falta de qualidade. Não se pode ter qualidade com produção em massa. Não se deseja isso porque demoraria muito a chegar. Portanto, para substituir isso há o estilo. Que é um logro comercial com a intenção de produzir coisas obsoletas e artificiais. A produção de massa não poderia vender seus produtos no ano que vem a não ser que faça o que vendeu este ano ficar fora de moda. Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais brilhantes do mundo. Mas na adorável cozinha branca a dona-de-casa americana média não consegue cozinhar uma refeição boa de se comer, e o adorável banheiro brilhante é sobretudo um receptáculo para desodorantes, laxativos, soníferos e produtos desta quadrilha de vigaristas que se chama indústria de cosméticos. Nós fazemos as embalagens mais bonitas do mundo, Sr. Marlowe. O que está lá dentro é, na maior parte, lixo." (pág. 253)
Dito por um escritor de romances históricos best sellers:
"- ... Uma vez tive um secretário homem. Despedi-o. Me incomodava ficando sentado por aí esperando eu criar alguma coisa. Cometi um erro. Devia tê-lo deixado ficar. Iam começar a dizer por aí que eu era homossexual. Os garotos inteligentes que escrevem resenhas de livros, porque não conseguem escrever mais nada, iam se encarregar de espalhar a notícia e minha carreira estaria feita. É preciso cuidar da carreira da gente, você sabe. São todos uns veados, todos eles. A bicha é o juiz artístico da nossa era, meu chapa. O pervertido é que está por cima agora." (pág. 270)
Diálogo entre o mesmo escritor e Marlowe:
"- Sabe de uma coisa? Não passo de um mentiroso. Meus personagens têm quase dois metros de altura e minhas heroínas têm calos no bumbum de tanto deitar na cama com os joelhos pra cima. Laços e fitas, espadas e carruagens, elegância e gentileza, duelos e mortes galantes. Tudo mentira. Usavam perfume em vez de sabonete, os dentes delas apodreciam porque nunca os escovavam, as unhas eram negras da sujeira dos estábulos. A nobreza francesa mijava nas paredes dos corredores de mármores de Versalhes, e quando finalmente se conseguia tirar as várias roupas de baixo da adorável marquesa, a primeira coisa que a gente notava era que ela precisava tomar um banho. Deveria escrever assim.
- E por que não?
- Claro; e iria morar numa casa de cinco cômodos em Compton....se tivesse sorte." (pág. 271)
Em que outro livro policial se encontraria comentários deste tipo?
Maurício Dias
Rio de Janeiro,
21/1/2003
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