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Sexta-feira, 31/1/2003
Fora de São Paulo
Alessandro Silva
+ de 2900 Acessos

O tédio, a preguiça e a aposentadoria do Sr. Sebastião - um homem cor de chumbo e abaixo de qualquer suspeita - convenceram-me a ir pescar no último fim de semana. Rumo a uma minúscula cidade assolada pela enchente e pelos desmoronamentos, não foi sem uma incômoda constatação que deixei o lugar.

Depois de termos montado acampamento diante da represa e depois de tolas horas de esperança diante de uma vara de bambu e de uma linha zero cinco, meti-me por trilhas apagadas para encontrar um ponto de mergulho. Adiante havia um encerado e, quando passei por ele, um negro enorme, insolitamente elegante ( usava tênis, calça de linho branca e uma camisa creme e flutuante ), emergiu e apontou, sem dirigir-me palavra, o lugar que eu estava procurando. Depois nos tornamos amigos e eu lhe dei do nosso conhaque e ele contou-me de suas insolvências e depois entregou-me, em folhas serenas e impolutas, o texto que segue ( Ah! Vi um sertanejo dirigir-se a ele pela alcunha "Africano" ). O leitor que tire suas inconclusões.

Contra o happyhour, o relógio, os bancos e as tortas de nozes

Não tenho muito o que dizer hoje. Somente que estou entusiasmado com esse maravilhoso livro de Steinbeck. Eis o estilo: duro. Aqui enxergamos com comovente lucidez.

O que me levou a lê-lo? Eu deambulava pela Avenida Paulista e fui desembocar no auspicioso, sofisticado e no entanto oco “Conjunto Nacional”. Uma galeria dessas sem razão, onde as pessoas tropeçam na cultura sem notar. Parei diante de uma Livraria e foi então que vi a foto do escritor estampada na capa de sua Biografia. Naturalmente o plano de fundo era a sebe. O que espantou-me foi o ar do vate. A disciplina espartana estampada em cada linha, em cada ruga do rosto; as rugas cor de terra amarfanhadas sobre a cabeça angulosa de veias atormentadas como cipós.

Curioso: podemos entender muito de alguém apenas observando-lhe a fisionomia. Vejam esse outro escritor, esse Magnus Mills. Bastou-me um lance d’olhos em seu cenho para ganhar-lhe: sujeito de escrita frouxa. Escreve de uma maneira franca coisas que não se pode escrever. Não idealiza nem inventa: é um mentiroso! Percebemos o movimento de suas idéias antes de esbarrarmos na cena. A coisa não se esconde como na mágica ou na pintura. Um esboço; sem contar as influências não dissimuladas. Sem dúvida que anda grunhindo ou expelindo livros.

Parece-me que conseguiram comprar todos os intelectuais da Europa! Porque somente em penúria o artista consegue produzir arte significativa? Torna-se mais profundo, mais humano, mais emocionado? Aproxima-se do "real"? Para termos uma idéia: imaginem uma pessoa frugal, um prato raso, uma coquete qualquer, uma magrela bem pavoneada, uma pessoa que por acaso chame-se Adriane Galisteu ou que tenha qualquer outro nome que evoque marca de macarrão ou aves terrestres, imaginemos que tope com os "Comedores de Batata". O que um tal espécime produz a partir do que vê? Sua superficialidade é tão avassaladora que o próprio Cândido diria a ela: "pois bem, mas um pouco de pessimismo também há de convir". E quanto ao gosto amargurado das relações humanas, é claro, é só adicionar um pouco de açucar dietético. Ah! E quanto de angústia não é capaz de gerar uma boa "balada" regada a cocaína, menta e chiclete de tuti-fruti! E como não é interessantemente avassalador e de primeira ordem um sofrimento provocado! É como se pudéssemos exclamar com Montaigne: "dominei-te, ó acaso, e reduzi todas as entradas pelas quais podias chegar até a mim!"

Mas ver é foda. E o que faz um homem como Steinbeck? Elege as idiossincrasias da sordidez ao status de obra de arte!

E espero - e não suspiro - que me dirão que toda essa arenga quer ensinar aos homens a busca pelo sofrimento! Ó, mas trezentos e cinquenta elegias não fariam válida uma tolice. Pois a vida é lisa como o breu e se apaga como a centelha: chocando-se com o ar e batendo contra a terra. Que sofrimento pode ser vital quando se chega à sua justa velhice achacando-se no leito de morte: “Ó Criton, devo um galo a Asclépio!"

Então nosso dever é esse: disciplinarmo-nos diante da gravidade derivada do verbo e quais soldados perfilarmo-nos entristecidos porque Steinbeck sofreu ou Maquiavel não possuía nada além de um bosque e de uns frangos depois de tanta dedicação à honra e à ascese de "O Príncipe"?!

Negativo - para falar como um tira. Meus caros, os literatos não nos procuram transmitir a parcimônia: são feixes de nervos, são Henry Miller; ah sim!, são crianças asmáticas e chicoteadas pelos pais, etc, que ao crescer desmontam a pose do Papa Inocêncio.

Literatos sempre precisam de grana mas nunca necessitam do dinheiro. Irão se preocupar com as coisas e lamentar o orgulho até reencontrarem sua "miséria dourada". Vejam só: querem ver os gatos e as bailarinas zanzando pelos cômodos enquanto dão uns retoques finais. E sua matéria prima na verdade são os bastões tostados de carvão.

O pior de tudo é que quando se conquista sobrevém o tédio. Então o literato quer voltar ao Parque Dom Pedro e observar mais uma vez como as pessoas viviam na Idade Média. Mas não nos deixa com essa imagem: quer nos dar sombra e água fresca.

Um espectro ronda a Europa: a monotonia das metrópoles. Reparem como os homens castigam-se com o trabalho. - Ora, mas, manifestações de ócio por aqui? Ora, ora, isso não parece prudente; até parece que lemos Wilde!.

Então agora a eficiência de uma apologia para o ócio! Ó, mas se eu queria apenas regar a minha roseira! Homem! Alto! Se você é uma besta dissimulada que ainda vai ao baile de máscaras, fique mais um pouco, pois o café ainda está quente. Se retira teus prazeres - Tu! hipócrite lecteur, mon semblable, mon frère! - secretamente, através do vinho, do 69 e da combustão do açucar a rodo, então fique.

Dessacralizemos definitivamente as coisas: somos cupins na madeira das trevas, destruindo o nosso quintal e dando estilingadas em nossos frangos; e no interior de um balão de oxigênio, no âmago de um ponto azul, girando e morrendo pelo nome da Terra. É isso: Platão perdeu. Dois mil anos de suspeitas diante dos sentidos para uma trágica conclusão: estamos livres até mesmo para um saco de pipocas. Nem a nossa Náusea diante das coisas nos justifica: ainda somos filhos de uma reação corporal! Quanto à nossa dissolução: observem os índios, que gozam a vida diante de um palito de fósforo, são faltos de razão? Seus corpos falam mais que suas cabeças e dançam como aranhas e trabalham como vulcões: e pensar que o índio acocorado diante sua tigela de barro provoca uma epifania maior que a visão de um soldador na linha de montagem da Ford! E toda a combustão, e todas as asas, e toda a velocidade por um borrão vermelho no rosto! Ó, e ainda construímos nossas banheiras para manter nosso rótulo sobre nosso corpo de vidro!

E no mais, tudo por que clama o literato é: “ó seres enfeitados, cavernas do mistério, tornem-se individuais” Isso é um paradoxo, mas é por isso que contém substância: tornar-se individual é o meio de voltar à vida coletiva. Pois bem: um nietzscheano a um pangaré roto, envergado de labuta, sociável, retórico e carismático. !

E os cupins ainda almejam a procriação! Homens, peçam esmola, tornem-se francos como uma gaita, viajem em porões e sintam-se livres para amar até mesmo na cabine telefônica. Essa é a contestação possível à nossa cara de moeda com cifra por nariz e números por pupilas. No mais, os sujeitos são pernas e braços e não ricos e pobres. A revolta é algo como um revolver com silenciador, uma convulsão mitigada pela entrega. !

A negação da opressão está numa fórmula, e a fórmula adianta-se com metáforas e não com tijolos de luz: negamos uma coisa quando recusamos acreditar que exista. Nós sabemos porque não sabemos ensinar: por que o erro é nossa vara de condão. Transformamos nosso tabuleiro em quadrados negros repletos de “nãos”. E depois que descobrimos em Wittgenstein que a palavra só existe num jogo de linguagem! Isso é para desesperar-se, tapar a boca com papelão e correr para a cozinha e enfiar a cabeça numa panela de água fervendo. E pensar que depois que usamos nossa escada ainda a conservamos no porão: sendo que tudo que deveríamos ter feito é nos tornado japoneses em nossa pátria. E Willian Blake todo dia engole sua capsula com essa: tudo o que não é ação é neurose.

Mas acalmem-se, eu não estou assim tão verbalmente cotado, sendo apenas um homem de madeira esquecida, a ponto de causar frisson. Isso agride aos que não lêem: aos que passam pela vida como um colar artesanal, aos analfabetos em potencial que não distinguem seu grito de nascimento do seu assombro diante do espelho adulto em que tudo passou. Depois de emporcalharem toda a cozinha com os apêndices funcionais: assistente, auxiliar, ajudante, administrador, gerente, diretor e sacripanta estamos aguardando liberação da liberação. Pegamos nossa senha com os burocratas e estamos aguardando uma definição para nós mesmos. Camaradas, para falar com Lênin, é nisso que acreditam: na dignidade do trabalho?

Às favas com o Umberto Eco. Ao inferno com os cargos, com as profissões e com a beneficência, com as pás de esterco lançadas sobre nossa carne pálida. “Mecânicos bezerros que nunca se aquecem”. E toda a sonegação do caráter! Homem, onde está você? Por baixo dessas solas gastas? Atrás desse capote sombrio? E ainda procriamos! Ainda cremos numa geração vindoura, mesmo com as estatísticas malthusianas despejadas sobre nós. Ah não, mas para tanto temos a arma de Estado: a superinformacionalização para gerar a superimbecialização.

Essas palavras sem reflexo não se eivam de fé. A perfídia é o maior engenho humano. Estou protestando enquanto “ninguém”, aquela palavra, aquele artifício do varão Ulisses para enganar o Cíclope, eu, o sem-rótulo, o inominável, a sardinha – também utilizo ônibus -, o alienado, o Lunático de Pamplona, o Dom Quixote de Paraibuna, o indigno de Platão: não há tampouco idéias por aqui. Meu chão é de terra vermelha, bem batida, como o das personagens de Steinbeck e como a linguagem de Nietzsche. Não me levem a sério, não se iludam. Nem o direito civil eu procuro aqui. Não serei uma besta rotulada.


Alessandro Silva
São Paulo, 31/1/2003

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