Michel Foucault foi um dos maiores pensadores que já existiu, com a vantagem de ter estado próximo de nós no tempo: nasceu e viveu no século XX, e morreu em 1984, aos 57 anos. Foucault foi uma das primeiras vítimas da AIDS, numa época em que a doença acabava de ter sido descoberta, e era rapidamente fatal para os portadores do vírus. O pensador francês era homossexual, e nos últimos anos de vida viveu mais intensamente - e abertamente - sua opção. Muito diferente do que aconteceu durante sua infância e adolescência. Criado em uma família cuja linhagem masculina exercia a medicina há três gerações, Foucault virou o joio no trigo primeiro por não querer seguir a tradição profissional, e insistir em ser professor de história. Depois, por descobrir que, ao contrário do que se considerava normal, Foucault gostava de homens, e não de mulheres. O dilema da homossexualidade acompanhou-o pela vida toda, mesmo que tenha parecido fazer as pazes consigo mesmo depois de adulto. Sua adolescência foi carregada de culpa, a ponto de o filósofo tentar o suicídio várias vezes, e acabar achando um meio termo autodestrutivo no álcool.
Dizer que ler Foucault faz a gente pensar é mais ou menos como afirmar que se abre o olho quando acorda - um processo natural. Por isso, não quero parecer simplória dizendo que, ao ler e discutir Foucault durante uma aula de Análise do Discurso, refleti sobre várias coisas. Ótimo!, minha professora diria. O objetivo é esse mesmo. Mas é que, além de refletir sobre o que deveria, acabei divagando. Em vez de derivar para compreensões mais sutis, mais elaboradas, em busca de uma originalidade de interpretação que talvez impressionasse meus colegas da academia, acabei me aventurando por um caminho mais humilde, longe da importância, da sapiência e da abstração que acompanham os discursos científicos.
O texto que estudamos em sala chama-se A ordem do discurso. É um discurso proferido por Michel Foucault no dia 2 de dezembro de 1970, na sua aula inaugural no Collège de France. Essa aula seguiu-se a muitas outras durante 13 anos, sempre às quartas-feiras, às 17h45. Nessa primeira aula Foucault faz uma apresentação das pesquisas e dos temas que pretende comentar no curso. Faz considerações sobre as características da produção do discurso na sociedade, "simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhes os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar sua pesada, temível materialidade". Durante toda essa apresentação é possível entrever o Foucault homossexual, o Foucault que rejeita as tradições familiares, o Foucault que aprendeu a se posicionar na sociedade de maneira original, o Foucault de Vigiar e punir, As palavras e as coisas, O nascimento da clínica.
Em seu discurso, falando sobre a ordem do discurso, o pensador cita três procedimentos de exclusão de caráter externo: 1) a interdição, ou seja, os assuntos proibidos, os tabus, o que a instituição não permite que se aborde, se fale, se comente, como o sexo e a política. Assim, "longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, é como se o discurso fosse um dos lugares onde estas regiões exercem, de maneira privilegiada, alguns dos seus mais temíveis poderes."; 2) a rejeição, como é o caso do discurso do louco. Desde Idade Média, a palavra do louco não vale nada, ou é investida de estranhos poderes, mas nunca considerada dentro da ordem do discurso das instituições; e o terceiro processo de exclusão - o que ele vai se deter com mais atenção, por acreditar que os dois primeiros para ele convergem - seria a vontade da verdade, quando o verdadeiro é assim considerado por estar manifestado, ou afirmado, dentro da ordem das disciplinas, das instituições, seguindo suas regras de produção e distribuição.
Foucault fala ainda dos processos internos de controle do discurso, como o comentário, a questão da autoria, da disciplina e o do ritual. Dentro do que me proponho com esta aventura, e devido a minha incompetência para tratar, dissecar e expor as idéias de Foucault com a exatidão e brilhantismo que elas merecem, vou ater-me ao ritual. Para Foucault, "a forma mais superficial e mais visível destes sistemas de restrição [do discurso] é constituída por aquilo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso; o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor constrangedor. Os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos, e em parte também os políticos, não são dissociáveis desse exercício de um ritual que determina para os sujeitos falantes, ao mesmo tempo propriedades singulares e papéis convenientes. Com um funcionamento que é em parte diferente, as 'sociedades de discurso' têm por função conservar ou produzir discursos, mas isso para os fazer circular num espaço fechado, e para os distribuir segundo regras estritas, sem que os detentores do discurso sejam lesados com essa distribuição".
Para uma análise do discurso, Foucault propõe que ele seja visto de acordo com certas exigências: 1) o que é considerado origem, como a autoria ou a presença de um discurso dentro de uma disciplina, seja visto, na verdade, como "um jogo negativo de um recorte e uma rarefação do discurso"; 2) não quer dizer que, além ou aquém da rarefação, exista um discurso ilimitado, contínuo. "Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram e se excluem; 3) não é como se o discurso apresentasse uma quantidade de significações prévias, cabendo a nós somente decifrá-las. "Ele não é cúmplice do nosso conhecimento."; 4) a significação do discurso não está no seu interior, escondida, como se fosse uma cebola que vai se descascando. Para analisar o discurso, é preciso "ir até suas condições externas de possibilidade, até ao que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e que lhes fixa os limites".
A partir daqui, começam as minhas divagações acerca do que Foucault disse naquele dia. É possível perceber, permeando as palavras e as idéias do pensador, uma mistura de influências pessoais e acadêmicas. Temas presentes na obra de Foucault, como o aspecto destrutivo da medicina (para curar, a medicina acaba causando novas enfermidades), o papel social das prisões, a loucura, os sistemas de punição, os processos de limitação da produção e distribuição do discurso, estão relacionados com sua trajetória de vida. Percebe-se sua relação com a medicina através das questões da disciplina, da doutrina, do verdadeiro, do ritual, em relação à ordem do discurso. Uma relação crítica e privilegiada, já que Foucault conhece sua ordem de funcionamento, pela presença em sua família. A medicina só considera verdadeiro o que é produzido dentro do seu sistema de produção, de acordo com suas regras. Assim como, para fazer parte desse sistema, é preciso estar de acordo com um ritual. Um exemplo clássico desse procedimento é a maneira como os médicos ainda são encarados pela sociedade, mesmo enquanto estudantes. Dentro da academia, são como seres superiores, privilegiados. Essa situação se mantém pela vida profissional, a ponto de os médicos estarem muito acima dos sistemas de ordem da sociedade. E para essa posição é exigido um ritual, um conjunto de comportamentos, de atitudes, de aparências.
A relação de Foucault com a homossexualidade pode ser entrevista no aspecto da interdição do discurso - no caso, do tabu - e também no ritual. Para Foucault, foi impossível exercer seu papel de filho de médico por não cumprir o ritual da heterossexualidade. Assim como não foi possível, para ele, assumir abertamente sua condição na academia, visto que esse comportamento também não obedecia aos rituais da instituição.
No entanto, o mais forte em seu discurso na aula inaugural no Collège de France foi a demonstração da importância da influência de outros professores e pensadores no seu trabalho, especialmente de Jean Hyppolite. Foucault começa A ordem do discurso dizendo que preferia se dar conta de que, no momento de falar, uma voz o precedia já há muito tempo, não havendo começo, e ao invés de ser aquele de onde o discurso sai, ele estaria ao acaso de seu curso. Em contrapartida a esse temor, como se imaginasse um diálogo entre ele a instituição, esta última responderia que o pensador não precisaria ter medo em começar, pois a instituição está presente justamente para fazer ver que o discurso está na ordem das leis, e que seu aparecimento é vigiado. Se a instituição está dando um lugar de honra, ao mesmo tempo está desarmando, e se quem fala pensa que tem algum poder, é porque esse poder é dado e controlado pela instituição.
Essa consciência em relação a seu papel junto à instituição - a seu serviço ao mesmo tempo em que a critica - mostra uma compreensão dos procedimentos, como se ele mostrasse que sabe do controle do seu discurso, mas nem por isso deixará de fazê-lo. Como seu professor, Jean Hyppolite, foi uma vez desconsiderado por essa mesma instituição por não estar de acordo com os rituais, Foucault transforma a sua escolha para aquele lugar na instituição como uma homenagem devida a seu mestre.
A introdução de Foucault, dizendo do seu temor em começar o discurso e desejando estar ao acaso de seu curso pode, a princípio, parecer uma fórmula filosófica, uma maneira complicada, rebuscada, de iniciar uma idéia. Essa suspeita permanece até o final do discurso, mas cai por terra e nos desarma completamente. No fim, Foucault fala de Jean Hyppolite: "se não me sinto à altura da tarefa de lhe suceder, sei, no entanto, e se essa felicidade nos pudesse ter sido dada, que teria sido, nesta tarde, encorajado pela sua indulgência. E compreendo melhor porque é que tive há pouco tantas dificuldades em começar. Sei agora qual é a voz que eu gostaria que me precedesse, que me conduzisse, que me convidasse a falar e que se alojasse no meu próprio discurso. Sei o que é que havia de temível em tomar a palavra, dado que o fazia neste lugar, onde o escutei, e onde ele já não está para me escutar."
Essa passagem leva à segunda parte das minhas temerosas divagações a respeito do texto de Foucault. Ele, já naquela época um importante pensador, teve a humildade de demonstrar a gratidão pelo seu professor, pelo seu mentor. Contrariando os rituais, fez isso de uma maneira emocionante, distante da formalidade e da assepsia do discurso acadêmico. O que me leva a imaginar a importância de Jean Hyppolite para a formação de Foucault, não só como filósofo, mas, por extensão, como pessoa, como ser humano. E seguindo nesse caminho, como é importante, e como não se dá valor à construção e à produção do conhecimento.
Todo mundo, algum dia na vida, deve ter sido grato a alguém por ter aprendido alguma coisa e por ter se sentido melhor com isso. Não importa se é na escola, na universidade, no trabalho, na rua. O que importa, porque é grave, é a falta de consideração e de valor que se dá à construção do conhecimento. No âmbito da academia, há o descaso de todos os lados: do lado dos professores da escola pública, cujo sistema, ao mesmo tempo, favorece a incompetência e desqualifica a competência, através da falta de processos de controle de qualidade de um lado, e de péssimas condições de trabalho de outro; do lado da escola particular, que por exaltar demais o lado empresa, cria uma situação onde o professor perde sua autonomia e, por conseqüência, a possibilidade de verdadeiramente ensinar, virando refém de pais e alunos preocupados em cumprir os anos escolares como um jogo eletrônico - passando rapidamente de fases. Sem falar, é lógico, no lado do governo, que contribui para manutenção das situações descritas acima, através do sucateamento da escola pública e da permissão para a invasão das escolas caça-níqueis. Não que a escola pública deva ser mantida como está - em muitos casos, como um celeiro de privilegiados, acessível a uns poucos iniciados, sem retornar o produto do conhecimento à sociedade que a sustenta - ou que as escolas particulares devam ser extintas - elas são importantes, e desde que geridas de forma comprometida com o ensino de qualidade, podem atender com qualidade quem tem recursos para bancá-las.
Depois de me aventurar pela interpretação das influências da vida pessoal e acadêmica de Foucault no seu discurso, de relacionar sua gratidão ao professor com a situação da produção do conhecimento no Brasil, passo à terceira e última parte das minhas reflexões. Todos os procedimentos de controle do discurso citados por Foucault podem ser aplicados na prática, no nosso dia-a-dia. Como apenas um dos exemplos, pode-se citar o presidente Lula como uma "vítima" deste processo. Vítima não no sentido de ter sido prejudicado, mas de ter sido obrigado a se sujeitar aos procedimentos da instituição para poder ter direito ao discurso. Lula só passou a ter o direito de aspirar à presidência a partir do momento em que passou a cumprir as exigências do ritual - sua maneira de se portar, suas falas, seu jeito até de se pentear e vestir, mudaram para estar de acordo com o exigido pela instituição. O discurso de Lula - entendendo-se por discurso não apenas a fala em um palanque, mas suas idéias, seu posicionamento político, sua imagem - foram recortados, limitados, moldados e decorados para que ele pudesse pretender à presidência.
Todo esse processo não é uma novidade, nem poderá ser eliminado, porque as sociedades sempre existirão, e sempre terão seus controles de produção do discurso. O que é importante é perceber o que está entremeado, o que não aparece escancarado, e para isso precisaríamos analisar o discurso a partir da metodologia proposta por Foucault em sua aula inaugural, citadas acima. Ou não, poderíamos adotar o método e as teorias de outro pensador sobre a análise do discurso. O fundamental é que a análise do discurso, não como disciplina, como a matemática ou o português, mas sim como hábito, faça parte dos currículos escolares desde cedo, e não apenas como uma espécie de prática para iniciados, já num curso de mestrado ou doutorado.
É lógico que isso não interessa à instituição, pois e educação é um dos instrumentos de controle. O aluno, desde criança, aprende a pensar segundo determinadas regras, e não é estimulado a construir o pensamento por si, fazendo suas próprias associações, relações, questionamentos. Pela última vez me apropriando da palavra de Foucault, "a educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que estes trazem consigo."
Referências bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Paris: Éditions Gallimard, 1971.
MOLINA, Daniel. El filósofo que se atrevió a todo. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Clarín, Buenos Aires, 25 de abril de 1999.
Interessante este seu texto , quer dizer que estamos fadados a cedo ou tarde sermos controlados e seguirmos rituais. Concordo! Mais prefiro mudanças de todas as formas quebrando regras e outras formalidades
Sim, Vinicius, estamos fadados ao controle, de acordo com a teoria de Foucault (e que eu acho que se aplica muito bem às situações que vivemos). Se eu for responder sua vontade de mudança de acordo com as idéias do texto, tenho que dizer que seu desejo é vão. A não ser que você queira estar à margem da sociedade - seja ela qual for.