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Segunda-feira,
29/9/1975
Ah sim! Apresentar-se...
Alessandro Silva
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Senhoras e Senhores,
Receio ter que me apresentar nas linhas que se seguirão. Antes porém gostaria de lhes dizer que a mim não apetece falar dessas coisas, mas sim apenas daquelas que, fazendo parte daquilo que poderíamos chamar de minha "visão de mundo", me torna mais próximo de você que busca na leitura aquilo que acha justo. E como falar de si é em verdade sublinhar aquela essencia que naturalmente nos identifica, escreverei uma alegoria para que através dela possamos demonstrar essa essencia "nessas alturas do campeonato", a saber, a situação presente desse ser toldado que denominamos "escritor".
Tornando-se O Que Se É
É apenas um pobre jovem despenteado e rastejante quem está saindo da espelunca agora. Ele é um grande jovem, acreditem-me, mas está com dificuldades.
Ele gostaria de estar longe dali, longe daqueles outros jovens perdidos e daqueles outros velhos bêbados. Mas não pode, acreditem-me: não pode.
E nós, como as velhas consternadas, queremos ajudá-lo, e queremos nos aproximar dele e dizer: "não, não faça isso; suporte mais um pouco; tenha paciência."
Acontece que não podemos nos aproximar dele porque ele está surdo e seu coração está decepcionado.
Reparem; reparem como vai cambaio e seu sorriso vai rasgado e cheio de trevas: não está a procura de coisa alguma; às vezes pára na calçada e olha para cima; mas o céu também não pode aproximar-se dele.
Aquela garota que vem lá de cima é atirada. Mas nunca namora os rapazes pra valer porque sonha em ser uma bailarina profissional. Ela sabe que nada disso tem fundamento; que está adejando e que vai acabar com qualquer cara estranho mais ou menos convencido de suas qualidades e que não dá importância a ela; mas ela continua; à noite, a brisa aproxima-se de sua janela, e a noite é quente e isso te transforma. É possível que você caminhe ao lado de pessoas suspeitas, pessoas a quem você nunca imaginou estar ao lado, e falando de coisas que jamais pensou em estar falando, algo como "existencialismo" ou de desastres naturais remotos que acometem povos obscuros de continentes estranhos. Isso é possível porque você é jovem, e está mais aberto para receber, e a noite nos predispõem assim.
Ela está só; vem descendo com suas calças brancas tipo corsário e, antevendo que tudo foi em vão, pensa na possibilidade de apenas assaltar o refrigerador e tomar duas bolas de sorvete com cobertura de morango e depois sonhar.
O jovem está atravessando a avenida e há um cachorro sarnento que corre em paralelo e apesar de cego também atravessa a avenida. O jovem olha para ele e se alegra.
O jovem está caminhando, e receio que não poderemos lhe dar um nome. Sim, bem, é claro que precisamos chamá-lo; sendo assim podemos convencionar o seguinte: quando sentirmos que está triste e necessitando de um nome que seja um nome semelhante ao de todos os jovens de sua geração, o chamaremos de Felipe, ok?
Bem, Felipe está passando diante da velha delegacia onde no passado tirou seu documento de identidade. À época estava entusiasmado, porque ia ter a sua própria grana e poderia ir ao cinema e ao estádio de futebol e evitar que seu pai lhe batesse mais; mas depois dos primeiros dias, as coisas só pioraram, porque descobriu que não só na sua casa as pessoas competiam e lhe obrigavam a fazer coisas.
Bem, mas não estamos falando de seu primeiro emprego. Surpreendemos Felipe bêbado, deixando uma adega e com um sorriso cheio de trevas na boca. Bem, sabemos que ele não tem para onde ir, que ele não sabe para onde vai e que não quer ir para casa para rolar na cama diante da TV ou de vozes que lhe exigem. Sendo assim, é claro que adivinharemos o meu próximo passo: a saber, que terei que fazê-lo encontrar-se com alguém.
Bem, vocês já sabem com quem irá se encontrar. Que tal pularmos essa parte?
Mas receio que não tenha muito o que dizer depois do encontro, pois é o momento em que Felipe volta para casa, toma o seu banho e na cama fica pensando: "como sou burro, como sou burro!"
Ademais, aconteceu algo que acredito curioso. É claro que acabou encontrando-se com aquela moça de calças brancas e acabaram beijando-se num banco de praça. Mas acontece que antes de beijá-la Felipe confidenciou-lhe coisas, bêbado, que não gostaria de ter confidenciado. E isso foi ruim, porque depois disso seu sentimento de culpa e sua covardia muito maltrataram aquela sua consciência em modelação. Ele disse:
- Bem... seria um lindo bebê... mas, tivemos... bem, ela teve... não poderíamos suportar as coisas depois entende?
E isso não era para ser dito; mas sabemos como são os bêbados: eles fracassam o tempo inteiro. Nós, é claro, gritamos do alto da ponte "não faça isso, não faça isso", mas, sabemos, trata-se de suicídio.
Não obstante, não foi algo que marcou a jovem a ferro quente por assim dizer. Quando entrou por uma passagem com a garota e então tirou seu pinto mole e quebradiço de dentro da cueca tentando introduzir em seu pequeno orifício pálido e molhado, uma voz cavernosa surgiu de suas costas:
- Ei! Quietinho aí! Vai pondo as mãos na cabeça e saindo bem devagar.
Quando aproximou-se do tira, ergueu a braguilha num ato reflexo e por alguns segundos fixou-se em suas olheiras fundas e roxas.
- Ei rapaz, sabia que não pode estar aqui a essa hora não é mesmo? Sabe que horas são? Sabe que horas são? Porra! E se aparece um cara e te rouba teu dinheiro e te pega a tua mina? Você sabe, você sabe... bem, qual a idade dela? É de menor? Então, tá vendo: e a mãe dela, como ficaria?
O pobre fracassado Felipe fazia uns lances de assentimento com a cabeça e emudecia. É um jovem bem de acordo com tudo; está tudo aí: ok, lhe falam coisas e ele em troca ouve.
E depois de tudo, ele tomou na sua uma mão gélida e inexpressiva. E durante a caminhada de volta não se falaram. Quando chegaram diante do portão dela, ele lha deu beijo morno no rosto e encaminhou-se. O bar estava fechado. Por trás da banca de jornal haviam cochichos e sombras avermelhadas de rapazes usando a sua droga. A rua de sua casa descia como a escada rolante do desespero; a fadiga não lhe poupava uma certeza: tinha certeza que nada do que fizera até ali fora certo. Não obstante, como tomamos como definitiva qualquer fase de nossa vida - como para prevenir aos deuses que amanhã também necessitamos de nosso pão - o jovem Felipe amadureceu e deixou de parte seu desespero e afastou as reclamações e fincou-se no que sabia fazer, esquecendo do amanhã e lembrando-se apenas uma vez por mês a si que existia, e igualmente deixando apenas para o dia trinta de cada mês o momento de ver seu rosto no espelho, ademais, deixando de fumar em definitivo.
Suas coisas vingaram e ele tornou-se gerente da loja de calçados e passou a participar do ambiente cálido e efusivo - e até mesmo bajulatório - dos vendedores e da loja em geral. Seu rosto ganhou muita massa e logo imitou os contornos de uma lua severa. E como só fazia pensar em prover os caprichos de sua formosa esposa, sua mente eivou-se das preocupações mesquinhas e seus cabelos espatifaram-se em delongadas obsessões.
Num fim de semana em que passeava com a cobiçada esposa por uma feira aberta de peças de antiquário, um tanto distanciado de seu par, nervoso ainda com a chantagem contida naqueles pedidos tão dengosos e mascarados, sabem os senhores quem ele avistou.
Então a primeira coisa que surgiu a ele foi um rosto bronzeado ornado por caracóis de azeviche caindo com liberdade pelas faces. Evidentemente que ele ainda tinha uma idéia oblíqua de si: pois o passado ainda não havia se retirado completamente: naturalmente ele concluía que as coisas não aconteciam para os fracassados. Mas não: ele realmente pôde surpreender-se. Ela estava acompanhada não por uma jovem, mas por uma senhora negra e alegre. E aquela companhia evidentemente dizia algo a respeito de sua melancólica solidão. Essa companhia, e também a evidencia de seu rosto bronzeado, e a esposa férrea lançando sombra sobre tudo, tudo isso ia tolhendo seu próximo passo e dando coragem a sua covardia. Bastava contudo, ele refletiu rápido, um bilhete contendo seu e-mail e mais nada. Depois, é claro, um delicioso encontro numa tarde fresca num desses motéis tão discretos quanto as circunstâncias. A jovem, tendo passado por ele, espantando-se com o rosto pálido e cravejado de preocupações não sorriu nem mesmo depois de voltar-se. Estava demasiado apreensiva para lhe falar; naturalmente deu meia volta e veio sentar-se próxima dele, numa barraca de comida baiana. Ele estacou e olhou para um lado e olhou para o outro e sentiu necessidade de urinar e de tomar uma decisão. Mas os fracassados nunca se decidem.
Alessandro Silva
São Paulo,
29/9/1975
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