COLUNAS
Quinta-feira,
6/2/2003
Kurosawa
Maurício Dias
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Akira Kurosawa nasceu em 1910. Quando jovem desejava ser pintor, mas só conseguiu algum reconhecimento como ilustrador, fazendo anúncios publicitários. Esta prática lhe seria útil mais tarde em sua carreira cinematográfica, pois o próprio Kurosawa se encarregaria de fazer os story-boards de seus filmes - "story-boards" são ilustrações mostrando o ângulo de câmera desejado pelo diretor, assim como a disposição dos atores e dos objetos no cenário em uma cena específica.
Aos 26 anos teve a oportunidade entrar nos estúdios da PCL, associados à famosa produtora Toho. Trabalhou alguns anos como assistente de direção e roteirista.
Durante a Segunda Guerra Mundial dirige seu primeiro filme, "A Vida De Um Lutador De Judô". Em 1949 dirigiu pela primeira vez o - então jovem - ator Toshiro Mifune.
Muitos dos grandes diretores de cinema estabeleceram um ator como sendo seu alter-ego em muitos de seus filmes. São famosas as dobradinhas Billy Wilder/Jack Lemmon, Fellini/Mastroianni, John Ford/John Wayne, mas creio que nenhuma terá sido tão fecunda e produtiva quanto a de Kurosawa com Mifune. Tudo o que se disser de bom sobre as interpretações nestes filmes ainda não será o suficiente para esclarecer o nível de excelência aí alcançado - para isso, só vendo os filmes.
Aos não familiarizados, a interpretação de Mifune poderá causar em alguns momentos uma estranheza, pois muitas vezes são acompanhadas de gritos e gesticulação excessiva, tradições do teatro japonês. Mas do patético Ronin inábil de Os Sete Samurais ao ganancioso e possesso nobre que aspira à coroa em Trono Manchado de Sangue, pode-se notar uma fúria e inquietação artísticas que no cinema ocidental talvez só tenham paralelo nas interpretações de James Cagney em Fúria Sanguinária (White Heat, 1950, de Raoul Walsh) e James Dean em Vidas Amargas (East Of Eden, 1955, de Elia Kazan - de quem ainda iremos falar.).
A parceria se estendeu por dezesseis filmes, tendo sido lamentavelmente encerrada devido a uma cisão pessoal durante a filmagem de Barba Ruiva, em 1965. Por este filme o ator ganhou o prêmio de interpretação em Veneza, como já havia feito em Yojimbo, em 1961.
O sentido pictórico de Kurosawa é inegável. Ao escrever sobre seus filmes, algumas de suas grandes cenas vem à mente: a agonia do nobre cravado por dezenas de flechas - chega a parecer um ouriço - ao final de Trono Manchado de Sangue; a casamata em chamas em Ran, onde o velho senhor feudal enlouquece, e, em meio ao ardor da batalha atravessa as linhas inimigas e vai a um campo colher flores; o menino retardado que acha que é um trem em Dodeskaden, e percorre trilhos imaginários em meio a um cenário miserável e devastado; tudo em seus filmes é grandioso.
O humanismo de Kurosawa transborda na tela, muitas vezes explodindo sob a forma de violência, especialmente nos épicos, seja numa visão mais contemplativa e lírica, em filmes como Dodeskaden e Viver. "Viver" (1952) mostra o tema kafkaniano do indivíduo contra a burocracia do sistema, embora traga-a para uma ambientação muito mais real, ao mostrar um velho funcionário público que, ao descobrir que tem pouco tempo de vida, decide fazer algo pela comunidade e usa de todas as suas forças para tentar construir um parque.
Nestes filmes, vemos uma grande compaixão e identificação com o sofrimento humano, mas em nenhum momento se faz pieguice ou exploração da miséria. Fica a sensação de como o homem é pequeno perante o mundo e seus desígnios, maravilhosamente expressa numa cena de um de seus últimos filmes, "Rapsódia em Agosto": um velhinho tenta caminhar em meio à uma tempestade, e o vento quebra as hastes de seu guarda-chuva, deixando-o sem nenhum abrigo. Para Kurosawa, o homem está só e desamparado em sua jornada, e é digno de compaixão. Como o cego na maravilhosa cena final de Ran - feito quando o diretor já tinha mais de 70 anos -, que tateia com sua bengala à beira de um abismo.
Ran tem as mais belas cenas de batalha de todos os tempos, a coreografia e a cenografia - são fundamentais as bandeiras e estandartes que tremulam ao vento, carregados pelas tropas de cavaleiros que se chocam em ondas contínuas - se combinam, produzindo um conjunto de beleza e movimento assombrosos, para depois nos mostrar o horror que há em toda aquela ação, cujo único objetivo é eliminar o adversário.
Como muitos grandes artistas, Kurosawa é melhor apreciado fora de sua terra natal. No Japão, seus gostos pela literatura ocidental - Shakespeare, Dostoievski, Gorki, todos adaptados por ele para o cinema - sempre foram contrários ao forte ideal nacionalista nipônico. Problemas pessoais e dificuldades econômicas da indústria de cinema japonesa levaram o diretor à uma tentativa - felizmente frustrada - de suicídio em 1970.
No final da década de 70, alguns cineastas ocidentais, fãs confessos, como Coppola e George Lucas, reuniram-se para viabilizar um filme do mestre, o belo Kagemusha (1980), que trata dos temas do duplo e da inversão de papéis ao mostrar um pobre coitado que, devido à semelhança física é escolhido para substituir o rei recém falecido. A dobradinha com os ocidentais continuaria pelo filme seguinte, o soberbo Ran (co-produção nipo-francesa), adaptação do Rei Lear de Shakespeare.
Aqui, vou entrar numa área meramente especulativa. Motivos menos nobres que a admiração artística pode ter levado o cinema americano a financiar os projetos de Kurosawa. Seu filme anterior a Kagemusha, Dersu Uzala (1975), foi uma co-produção russo-japonesa. Talvez autoridades americanas temessem a aproximação de um cineasta extremamente talentoso das forças do inimigo - ainda estávamos na Guerra Fria; em 1980 os EUA liderariam o boicote internacional às Olimpíadas de Moscou.
O governo americano tem plena consciência da poderosa arma de propaganda que é o cinema. Através dele venderam ao mundo todo os conceitos de calça jeans e hamburgueres, e mais que isso, o ideal do american way of life. Embora Kurosawa não tenha nunca sido um artista de temas politizados, exemplos anteriores, como o do cineasta russo Sergei Eisenstein e a alemã Leni Riefenstahl, mostram o poder desta mídia nas mãos de alguém com talento.
Kurosawa morreu em 1998. Foi o maior pintor e poeta que o cinema já teve.
Maurício Dias
Rio de Janeiro,
6/2/2003
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