COLUNAS
Segunda-feira,
24/2/2003
O homem que está mudando Londres
Arcano9
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Umas palavrinhas sobre liderança, um termo tão na moda.
Não sei exatamente o que é liderança. Provavelmente Rudy Giuliani sabe, pois escreveu um livro com esse pomposo título, Liderança. Não li o livro, mas sei que o ex-prefeito de Nova York, embora inútil para salvar a vida das 3 mil vítimas fatais do 11 de setembro, pouco depois das fatídicas colisões estava lá, sendo filmado. Foram aquelas cenas clássicas dele tapando o rosto, perto do Ground Zero. O povo precisava dele lá, pelo menos para dar moral, e lá estava ele. Antes, até, Rudy Giuliani havia decidido arrebentar com os pixadores nova-iorquinos e, assim, criar uma reação em cadeia que ajudou a neutralizar os grandes criminosos da Big Apple. A operação Tolerância Zero foi um bom, eficiente, exemplo de liderança.
Aí, temos Tony Blair. Blair, no sábado da semana retrasada, foi lembrado nas ruas da capital britânica nos xingamentos das cerca de um milhão de pessoas que foram às ruas protestar contra a possível ofensiva militar contra o Iraque. "Você está errado, Tony, somos seus eleitores e dizemos que você está errado", dizia um cartaz. "O que queremos com esta manifestação é parar a guerra, mas não acho que dá para parar a guerra, afinal, ela já está planejada há muito tempo. Então, o que queremos é passar o recado a Blair. Dizer a ele: 'Olha, se você quiser seguir em frente com essa idéia de guerra, OK. Mas você vai ter que pagar por isso. Pagar caro por isso'", disse um manifestante. A popularidade do líder trabalhista britânico está despencando. E ele diz que sabe o que é melhor para seu povo. E Bush diz que o admira como líder. E os tablóides o chamam de "poodle" de Bush. Quem está certo? A liderança aponta para o norte, como deve apontar a agulha da bússola?
Como dizem os britânicos, hardly. Mas tempos intensos se traduzem em lideranças intensas - intensamente boas, cegamente ruins.
Um velho desafeto político de Tony Blair é o prefeito da capital britânica, o ex-trabalhista Ken Livingstone (foto acima). O homem que está mudando a cara de Londres é um velho conhecido da cidade. Nos anos 80, antes da primeira-ministra Margaret Thatcher acabar com o Conselho da Grande Londres, ele era o líder da casa, e entrou em rota de colisão com Downing Street em vários momentos - especialmente quando liderou uma campanha por tarifas de transporte mais justas. Em 1986, o Conselho, que era parecido com uma câmara de vereadores, foi desativado. E Londres voltou a ser o que sempre foi: não uma cidade, mas um amontoado de towns, boroughs, districts, caoticamente administrado da forma mais descentralizada imaginável, com áreas possuindo até polícia própria. A tradição de descentralização administrativa ainda permanece, com os districts cobrando taxas distritais diferentes, tendo administradores de variados partidos, diversas prioridades. Mas, desde 2000, Londres, como um todo, voltou a ter um governo próprio. Mais do que isso: passou a ter um prefeito, algo inédito em sua história. E Livingstone, que tentara se lançar candidato pelos trabalhistas e fora jogado para escanteio por Blair, venceu com facilidade numa chapa independente. Durante seus anos seguintes, permaneceu em pé de guerra com o Executivo central, mas essa guerra foi mais ou menos invisível até o ano passado. Até então, Livingstone foi cômico - lançou a idéia de erradicar os pombos "anti-higiênicos" da Trafalgar Square (não conseguiu); manteve o hábito "proletário" de ir ao trabalho todo dia de metrô lendo o seu jornal (algo sempre mostrado pela BBC); e inaugurou a sede da prefeitura: uma estrutura moderníssima em forma de testículo inclinado, cortado em sucessivas rodelas horizontais, ao lado da Tower Bridge. Nunca a secular região da Torre de Londres, onde foi construído o prédio, pareceu tão na moda.
Todavia, no final do ano passado, talvez pela proximidade das novas eleições para prefeito e pelo desejo de se reeleger, Livingstone decidiu passar a exercitar sua "liderança" de forma mais convincente. Em primeiro lugar, peitou o primeiro-ministro e se negou a aceitar a proposta de privatização do metrô londrino. Segundo o prefeito, a solução para o caos no metrô estava em uma administração mais eficiente, não em sua transferência para a iniciativa privada. Livingstone temia que isso fosse se traduzir na redução da segurança dos trens. Lutou na Justiça e, de tanto espernear, conseguiu evitar o que parecia inevitável e assumiu o controle sobre o metrô - que, até então, era controlado diretamente pelo Executivo central. Até agora, o metrô não melhorou muito, mas Livingstone contratou, a peso de ouro, o sujeito encarregado de gerenciar o metrô de Nova York. Além disso, não mexeu no esquema tradicional de aumento das tarifas só em primeiro de janeiro de cada ano. O povo gostou, pois Livingstone chamou para si a responsabilidade: se o metrô não melhorar, culpem-me.
A aposta política de Livingstone, porém, passa a partir desta segunda-feira pelo seu primeiro grande teste em Londres. Trata-se da inédita iniciativa de pedágio urbano, aplicada pela primeira vez numa cidade de tamanha importância e população. O objetivo da medida é diminuir os congestionamentos na zona central. Outras cidades têm coisas parecidas - Oslo, na Noruega, cobra uma taxa de todos os veículos que querem entrar na cidade, embora lá o objetivo não seja diminuir o fluxo de veículos rumo ao centro, mas financiar a construção de novas estradas e túneis. De qualquer forma, a entrada em vigor do pedágio urbano despertou críticas ferrenhas e elogios apaixonados a Livingstone na capital britânica. Os críticos, principalmente fornecedores de alimentos para feiras e mercados do centro, dizem que o pedágio de 5 libras (cerca de R$ 30) por dia é uma taxação direta sobre o lucro deles. Eles também acham que o pedágio não vai adiantar nada, pois pessoas que usam o carro para ir trabalhar já tem que pagar as salgadas taxas dos estacionamentos particulares, e que não se importariam em pagar um pouco a mais. Já os defensores da iniciativa pregam que, embora não seja possível saber os exatos efeitos do pedágio na prática, pelo menos trata-se de uma tentativa de diminuir os congestionamentos. E que pode dar certo.
É claro que os congestionamentos de Londres, se comparados com os da avenida Brasil, no Rio, ou com os da Rebouças ou das Marginais, em São Paulo, são uma piada. O metrô de Londres, com todos os seus problemas, ainda é capaz de levar você onde você quiser, enquanto em São Paulo só agora vão passar a construir a linha amarela, que será uma verdadeira ponte de safena cobrindo a artéria da Rebouças. Também, da mesma forma, acreditar que o pedágio urbano possa dar certo numa das grandes megalópoles brasileiras seria um ledo engano. Por enquanto, as pessoas não têm alternativas viáveis de ir ao trabalho, se moram longe. Preferem ficar paradas ao volante e demorar duas horas para chegar ao destino a depender dos lamentáveis ônibus, que demoram mais de duas horas em jornadas de calor infernal, desconfortáveis, infestadas de bandidos e vendedores ambulantes.
Mas Londres é outra coisa. Sendo uma das cidades mais ricas da Europa, a capital britânica pode se dar ao luxo de experimentar essas coisas. Há muita, muita gente que nem esperou a adoção do pedágio para encontrar formas alternativas de transporte e vão ao trabalho de bicicleta, se aproveitando da geografia plana da cidade. Há outros que vão patinando, outros a pé, e nada disso é incomum. Muitos outros nem precisam vir até o centro para trabalhar - ao contrário do que ocorre nas cidades brasileiras, os escritórios não estão só em um ou dois bairros. Há dezenas deles no centro financeiro, mas dezenas também em outros locais, como nas Docklands... que, por sinal, ficam fora da zona de pedágio.
A primeira semana do pedágio urbano em Londres coincidiu com uma semana de recesso nas escolas, que voltam a funcionar normalmente nesta semana. Na segunda-feira passada, primeiro dia do esquema, cerca de 10 mil motoristas desrespeitaram o pedágio e devem já ter recebido as multas de 80 libras (cerca de R$ 490). Aparentemente, o esquema funcionou durante a semana, e o tráfego fluiu mais solto. Isso contrariou as próprias expectativas negativas de Livingstone, que vinha esperando que "algo acontecesse de errado". É dever do líder preparar o povo para o pior. E também é dever dele fazer o que ele acha que é certo para seu povo. Com cuidado para não deixar de ouvir quem está à sua volta, Livingstone pode ser o Giuliani de Londres. Só espero que Tony Blair, que ultimamente anda sem bom senso, não cometa o erro de embarcar na guerra só para ofuscar o esforço de seu inimigo em Londres.
Arcano9
Miami,
24/2/2003
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