Tradicionalmente, o mês de março configura-se com o retorno das gravadoras à atividade comercial própriamente dita.
Quem viveu em 2002 sabe que esse foi um ano em que as multinacionais do disco nada investiram em novos talentos, o que mais se viu nas gôndolas foi reciclagem de acervo fonográfico. Em 2003, a saga promete continuar.
Se por um lado a reciclagem atinge benéficamente um público seleto, ávido por quinquilharias musicais, por outro atinge cruelmente o novo talento que tromba pesado com a redução de possibilidades de acesso ao mercado de gravadoras e com a concorrência feroz do mercado de relançamento, ainda não percebido pelo camelô.
Aqui no Brasil, a bola da vez são os relançamentos de discos anteriormente gravados no formato LP, e que agora que têm suas edições contempladas pelo formato CD.
A situação fonográfica por aqui não é muito diferente da de outros rincões. O que muda é apenas o formato: nos EUA, a bola da vez são os lançamentos de coletâneas.
Outro formato que vem recebendo atenção por parte das multinacionais do disco é o DVD, com gravações de espetáculos musicais ao vivo. Claro, sempre de artistas e repertórios já fartamente manjados e consagrados pelo consumidor.
Eu tenho a nitida impressão de que o mercado atual de música no Brasil divide-se claramente em três faces: o das recicladoras, notadamente as multinacionais, que a exemplo do atual governo só recicla projetos do passado; as gravadoras cujo segmento é atualmente representado predominantemente por empresas nacionais; e os realmente independentes, que são artistas que auto-financiam suas produções.
Outro aspecto que vale ser observado é a profissionalização do mercado de relançamentos musicais.
Um nítido exemplo é o relançamento pela EMI de mais 25 albuns remasterizados da série 'Odeon 100 Anos de Música no Brasil'. Sua relação atende a todas as tribos: samba, choro, bossa-nova, funk, rap, psicodélico, instrumental, orquestral, mpb, soul, rockabilly, jovem guarda, mineirices em geral e até pilantragem.
E a saga do relançamento não pára por aí: a mesma EMI, no rastro da comemoração de 100 Anos de Odeon no Brasil, despeja no mercado mais 20 titulos reunidos em 10 CDs que ela batizou de "Artistas 10 Polegadas".
Dez polegadas foi o formato inicial do LP de 12 polegadas. O primeiro formato (10) abrigava no vinil 8 músicas (4 em cada face), enquanto que o segundo (12) expandia a capacidade de armazenamento musical para 12 músicas.
Somando-se os titulos destas duas coleções atinge-se a cifra espantosa de 45 discos relançados pela EMI contra nenhum novo talento anunciado.
Abaixo reproduzo integralmente a redação informativa do catálogo promocional - fornecido aos lojistas pela ex-gravadora e atual recicladora EMI - com o único objetivo de orientar a compra já que, com essa belezura de taxa de juros a 26,5% ao mês, o dinheiro não tem aturado desaforo. Leia com atenção e descubra em que tribo musical o departamento comercial da recicladora o inclui:
ANTONIO ADOLFO E A BRAZUCA
Formada em 1969 por Antonio Adolfo (teclados) Luiz Cláudio Ramos (guitarra), Luizão (baixo), Vitor Manga (bateria), Bimba e Julie (vocais), a Brazuca repaginou valsa, baião e toada (moderna) com psicodelismo e avais dos reis Carlos: Roberto, da Jovem Guarda, e Imperial, da Pilantragem.
BOSSA 3 - OS REIS DO RITMO
Na segunda formação com o líder Luiz Carlos Vinhas (piano), mais Ronnie Mesquita (bateria) e Otavio Bailly Jr. (teclado), este Bossa 3 de 1966, após o estouro do show Gemini V com Leni Andrade e Pery Ribeiro, irradia Bossa ("Samba de Verão", que arranjo!) e samba de morro (Não me diga adeus com apito e tudo).
CASSIANO - APRESENTAMOS O NOSSO CASSIANO
Artífice do soul nacional, o paraibano Genival Cassiano, em 1973, investia no lado orquestral de seus grooves sob os arranjos de Carlos Alberto Girio e regência de Orlando Silveira. Vibrato, eco, falsete e harmonias elaboradas adensam a obra.
CELLY CAMPELLO - ESTÚPIDO CUPIDO
Rockabilly, boogie e até rumba (de Henry Salvador) crepitam na voz deliciosamente teen da estreante Celly (aos 17!), paulista de Taubaté que adubou o rock nativo orquestrado pelo acordeonista Mário Genari Filho no longíqüo 1959.
CESAR CAMARGO MARIANO E HÉLIO DELMIRO - SAMAMBAIA
Formados nas hostes da bossa, o pianista Cesar Camargo Mariano e o violonista/guitarrista Hélio Delmiro casam perícia e improviso (enxuto) neste clássico instrumental de 1981, entre standards e fina caligráfia autoral.
CORO DOS COMPOSITORES DA PORTELA - SAMBAS DE TERREIRO 1972
Em 1971, ainda se cultivavam nas escolas os sambas de terreiro registrados nesta jóia rara pelos próprios bambas (alguns já falecidos) da azul e branco, como Candeia, Paulinho da Viola, Joãozinho da Pecadora, Alberto Lonato, Monarco, Norival Reis, Velha, Catoni, Cabana e Casquinha.
DILERMANDO PINHEIRO - BATUQUE NA PALHINHA
Original do selo Regency entre o final dos 50 e início dos 60, com arranjos de Amâncio Cardoso, produção de Paulo Gesta e Baden Powell, noviço na guitarra, este disco foi reeditado em 1977 pela gravadora Marcus Pereira. Resgata o sincopado ágil do discípulo de Luís Barbosa e seu 'sincopado de palha'.
DÓRIS MONTEIRO E LÚCIO ALVES NO PROJETO PIXINGUINHA
Precursores da bossa, os intimistas Doris e Lucio em diálogos (Mudando de conversa, De conversa em conversa) e solos (Mocinho bonito - Doris - Valsa de uma cidade - Lúcio) com pequeno acompanhamento, regência de Ricardo Albano Junior, mostram em 1978 como articular sambalanço e samba-canção.
EDU LOBO - EDU LOBO
Um dos responsáveis pela fase nordestina da bossa, o carioca Edu Lobo adiciona ao refino do sotaque (Vento Bravo, Viola fora de moda, Zanga zangada) neste disco de 1973, um mergulho sincrético na litúrgia (Kyrie, Incensele, Oremus).
ELIANA PITTMAN - ELIANA PITTMAN
Gravado em 1972 com o Quarteto Cido, de Cidinho (piano), Daniel (baixo), Nelsinho (bateria) e um dos pais do samba-rock, Lus Vagner na guitarra, este solo atesta o ecletismo da filha do jazzista Booker Pittman, do baião (Benzim) ao fox (Murmurando) e o afro samba (Besouro mangangá).
ELZA SOARES - ELZA, CARNAVAL E SAMBA
Cantora completa, Elza está em seu elemento natural neste disco de 1969. Ginga irresistível, quebrada vocal, sambas de arraso (Heróis da Liberdade, Fechei a porta, Que samba bom, Não me diga adeus) e dialogo incadescente com os sopros do Maestro Nelsinho.
GOLDEN BOYS - FUMACÊ
Pioneiríssimo do pop nativo, fundado no final dos 50 dominado pelo The Platters, os cariocas GB, de vocal muito requisitado pela MPB, atravessaram a jovem guarda e neste disco de 70 viajam da inflexão soul de "O cabeção ao malandro Fumacê" e o suingado "Quarentão Simpático".
LÔ BORGES - A VIA LÁCTEA VAMOS QUE EU JÁ VOU
Na sequência do ícone Clube da Esquina 2, do ano anterior, este denso disco de Lô, de 1979, que inclui a música tema e agrega os sócios Wagner Tiso, Milton Nascimento, Toninho Horta, Flávio e Cláudio Venturini, Téo Borges e mais Robertinho Silva, Luis Alves e Copinha na tapeçaria mineira.
LÚCIO ALVES - SUA VOZ INTÍMA, SUA BOSSA NOVA...
O fraseado sútil do grave 'resfriado' do cantor das multidinhas (em oposição às multidões de Orlando Siva), o mineiro Lúcio Alves desfila sob audazes arranjos do maestro Gaia em 1959. Tudo suinga, a orquestrona, o vozeirão exato e até épicos de época como Conceição e Ninguém me ama.
LUIZ ARRUDA PAES E SUA ORQUESTRA - BRASIL DIA E NOITE
Aberta por sopros eloqûentes, a versão de A Voz do Morro de Zé Keti era o prefixo do programa de TV de maior audiência nos anos 50, Noite de Gala. Lançado em 1956, aos 40 anos do maestro paulista, este disco iniciaria uma série com standards repaginados por ele de forma especial.
MARCOS VALLE - MUSTANG COR DE SANGUE
Rei da levada, inventor de grooves, o bossa-novista Marcos Valle investe na toada moderna (num dueto com Milton), incorpora o funk e remodela do frevo ao jingle sempre sobre o filtro do rigor harmônico.
NADINHO DA ILHA - CABEÇA FEITA
Vozeirão intenso, quase sósia do compositor Monsueto, o eloqûente Nadinho, produzido por João de Aquino, trafega neste disco de 1977 por sambas de todos os calibres com a adesão de bambas como Wilson Moreira, Délcio Carvalho, Tia Hilda e Walter Rosa.
PIXINGUINHA - SOM PIXINGUINHA
O gênio do choro, pai da MPB, empunha o sax-tenor em 1971 e disseca parte de sua obra monumental ao lado de ases como Altamiro Carrilho, Zé Menezes, Orlando Silveira, Dinho, Marçal, Geraldo Vespar, Meira, Dom Salvador, Canhoto, numa produção luminosa de Herminio Bello de Carvalho.
RIBAMAR - NOITES CARIOCAS
Parceiro de Dolores Duran, este militante pianista da noite, percorreu as principais boates da zona sul do Rio. Em 1975, aos 25 anos de carreira, Ribamar, ás do samba-canção de fossa, revisita favoritas de vários formatos e latitudes.
ROSA MARIA - UMA ROSA COM BOSSA
Descoberta por um Wilson Simonal em ascensão, com quem divide faixa, a afiada Rosa Maria estreou em 1966. Filiou-se no lado antiprotesto da bossa (A resposta, Vê) além de gravar o raro Mário Castro Neves, Tito Madi e o iniciante Luis Carlos Sá (do futuro Sá, Rodrix & Guarabira).
SKOWA E A MÁFIA - LA FAMIGLIA
Ex-Sossega Leão, Skowa & A Máfia (Tchê, Bukassa, Kiki, Monica, Liége, James e Tonho Penhasco) engatam funk/rap no BRock no final dos 80 (Atropelamento e fuga, Amigo do amigo) com aparte de Ed Motta e a benção do patriarca Ben Jor (África Brasil).
SÉRGIO RICARDO - NÃO GOSTO MAIS DE MIM
Estréia fulminante deste pilar da bossa-nova nascido em Marília (SP). Produzido por Aloisio de Oliveira ele já mesclava com extremo requinte, em 1960, protesto (Zelão) e o romantismo de modernista (Pernas, Poema Azul, O nosso olhar, Ausência de você).
SOM IMAGINÁRIO - MATANÇA DO PORCO
Terceiro disco (de 1973) do grupo formado para acompanhar Milton Nascimento em 1970, aqui com Wagner Tiso (teclados), Tavito (guitarra), Luis Alves (baixo) e Robertinho Silva (bateria). Temas incorpados e viajantes, destaque para o do título, escrito para o filme "Os deuses e os mortos", de Ruy Guerra.
WAGNER TISO - WAGNER TISO
Arquiteto orquestral do Clube da Esquina mineiro, Wagner Tiso, num solo de 1978, explora sua veia sinfônica. De "Igreja Majestosa" à "Rapsódia Trespontana", onde celebra a cidade natal, ao baião "Os Cafezais Sem Fim", o folk "Mineiro Pau" e o primal "Choro de Mãe".
WANDERLÉA - VAMOS QUE EU JÁ VOU
Produzido e arranjado pelo papa instrumental Egberto Gismonti (autor de 4 faixas), este disco de 1977 projeta a musa da jovem guarda para outros vôos com o revelado Altay Velloso (guitarra, composições) e o suporte dos colegas de movimento, Roberto e Erasmo.
SÉRIE 'ARTISTAS 10 POLEGADAS' (2 em 1):
01-CAROLINA CARDOSO DE MENEZES
Sucessos em Desfile 1
Sucessos em Desfile 2
02-DALVA DE OLIVEIRA COM ROBERTO INGLEZ
A Voz Sentimental de Dalva de Oliveira
Dalva de Oliveira co Roberto Inglez e sua Orquestra
03-DORIVAL CAYMMI
Eu vou pra Maracangalha
Canções Praieiras
04-FRANCISCO ALVES E MÁRIO REIS
Os Duetos de Francisco Alves e Mário Reis
Album da Saudade
05-FRANCISCO EGYDIO, ROBERT0 PAIVA, TOM JOBIM e VINICIUS DE MORAES
Polêmica
Orfeu da Conceição
06-DEMÔNIOS DA GAROA E CONJUNTO FARROUPILHA
Saudosa Maloca
De Norte a Sul
07-ZÉQUINHA DE ABREU COM ORLANDO SILVEIRA E ANTENÓGENES SILVA
Zéquinha de Abreu com Orlando Silveira e seu Conjunto
Antenógenes Silva - Valsas e Saudades
08-AUGUSTO CALHEIROS E ORLANDO SILVA
A Patativa do Norte
Serenata
09-TRIO IRAKITAN
Três vozes que encantam
Lendas e Pregões do Brasil
10-HEBE CAMARGO E ISAURA GARCIA
Festa de Ritmos
Personalíssima
Notícia de última hora
Moisés Santana que, na minha arrogante opinião, foi o melhor artista/compositor/cantor/revelação de 2002 estará em curta temporada no Crowne Plaza, anote e não perca:
20 e 27/03/03 - quintas - 21hrs.
Teatro Crowne Plaza
(Rua Frei Caneca, 1360, tel.: 289 0985)
Para saber mais sobre a incrível sonoridade de Moisés Santana clique aqui.
Caro W, já me associei ao Carlão para com uma previa avaliaçao da coleção selecionarmos os cds de nosso interesse e dividirmos a grana. Me chamou a atençao a série "Artistas 10 polegadas"(2 em 1)pelo inusitado(ou sei lá o que).
O autor do artigo não podia ter sido mais irônico com as gravadoras. Porque as pessoas são tão negativas e do "contra"?
A música brasileira, uma das mais ricas do mundo, possui inumeráveis tesouros guardados nas estantes das gravadoras.
Depois de anos para lançar discos espetaculares, como o do Bossa três (comprem, trata-se de um dos mais fantásticos grupos instrumentais da MPB e o do Pixinguinha, por exemplo, que dispensa qualquer conmentário), o que começou a ser feito sem dúvida, com o impulso da pirataria, o autor ainda chama as gravadoras pejorativamente de recicladoras ou algo do gênero...
O que ele não percebe é que as majors (gravadoras multinacionais) estão se voltando em todo o mundo para seus catálogos, enquanto novos selos estão surgindo com extrema especialização, como a Trama, Dubas, Biscoito Fino etc.