COLUNAS
Terça-feira,
1/4/2003
A alegria da música - Ella Fitzgerald
Maurício Dias
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"When she sings hot, you can't be solemn
It sends the shivers up and down your spinal
column."
George & Ira Gershwin, em My Cousin in Milwaukee
Vivemos numa era de mediocridade. Boa parte dela invade nossos lares, via antenas ou cabos. Em inglês mediocrity e media (mídia) tem o mesmo radical fonético, o que me parece bem apropriado. Em português devíamos falar em "mídiocridade".
Nunca se viu um desprezo tão grande pela cultura e seus benefícios. As pessoas param mortificadas para assistir a um bando de garotas e garotos de programa - vamos botar a bola no chão, é disso que se trata - reunidos numa casa, andando sempre em trajes de banho e desfilando sua sabedoria.
A massa não sabe apreciar uma odalisca de Matisse; John Coltrane e seu grupo tocando "My Favorite Things" ou "A Love Supreme"; "Meu Tio o Iauaretê" de Guimarães Rosa. Isso pra citar só contemporâneos, que foram vanguarda ou modernistas no século que terminou. Rubens, Mozart, Gil Vicente, então, aí já é pedir demais.
Acho que é obrigação dos pais se prepararem e agirem para garantir a sanidade mental dos filhos num mundo recheado com Ratos e Gugus, éguas e cachorras, Pokemons e Digimons - há imbecialidade para todas as idades. É preciso transformar os lares em bunkers, impermeáveis a esta onda avassaladora de mediocridade - já que na rua, inevitavelmente, estamos todos expostos à falta de educação alheia, a carros com alto-falantes tocando a todo volume obscenidades estacionados na nossa esquina.
Outro dia, almoçando num restaurante de um Shopping, o grupo de jovens na mesa ao lado conversava animadamente sobre quem devia ou não ir para o paredão do Big Brother. Opiniões antagônicas eram defendidas acirradamente, e eu, bestificado com aquele envolvimento todo. Dava vontade de falar: "- Falem de algo menos nauseante, estou tentando comer!"
Veja bem: não eram empregadas domésticas e porteiros conversando num trem de subúrbio, eram jovens de classe média num Shopping da zona sul do Rio de Janeiro. Talvez eu mereça mesmo ouvir tais asneiras, quem manda almoçar em Shopping?
O conceito de arte popular se perdeu. Se ouvimos a música popular dos anos 40, brasileira ou americana, e as compararmos com a música atual, dá vontade de chorar. Não tem mais letra, nem harmonia, e os timbres dos "cantores" soam como o de camelôs apregoando seus produtos.
Não que não houvesse antes erotização na música. As marchinhas de carnaval sempre foram maliciosas e sacanas. Mas a escrotidão - não há outra expressão adequada - que é empurrada ao povo hoje em dia é abjeta. O fruto de almas ressentidas, cheias de negatividade e recalques, que se acham no direito impô-los aos demais. E o rebanho vai atrás.
Um tônico balsâmico contra todo este lixo vem dos anos 1950: ELLA FITZGERALD SINGS THE GEORGE AND IRA GERSHWIN SONGBOOK.
Lançado pelo selo Verve, são três Cds ao todo, mais de cinqüenta faixas, e pode ser comprado pela internet, na amazon ou na
cdnow - Não é barato, mas vale cada centavo.
A leveza e dicção perfeitas da grande diva, os arranjos magistrais de Nelson Riddle - o arranjador dos discos de Sinatra na fase da gravadora Capitol, o auge do Blue Eyes -, as melodias do maior compositor popular do século XX, e por último, mas não menos importante, as letras de Ira Gershwin.
Aliás, sobre as letras, recomendo o livro The Complete Lyrics of Ira Gershwin (Da Capo Press, NY) para se ver um senso de humor, métrica e beleza que só tem paralelo em Cole Porter. Uma aula de música popular sofisticada, adulta, por vezes irônica, por vezes lírica e extremamente romântica. Para encontrá-lo, tente a amazon.
Na caixa de CDs, as obras-primas se sucedem. Você já as deve ter ouvido na voz de outros cantores, um bom número delas faz parte do repertório de qualquer bom crooner do século passado: But not for me; Nice work if You can get it; The man I love; Someone to watch over me; A Foggy day e muitas outras.
Mas o melhor para mim são as metalingüísticas The Real american folk song e By Strauss, ambas homenagens às avessas ao musical americano: uma diz que a música americana é "uma bebedeira mental" e a outra a compara pejorativamente às valsas. Mas ainda assim são homenagens. No filme "Um americano em Paris", By Strauss é cantada por Oscar Levant e Gene Kelly.
Maravilhoso é o fato que nestes CDs as músicas venham sempre com o prólogo (todos em versos), que muitas vezes eram cortados das versões que se costuma ouvir nos discos de outros grandes nomes da época.
Além dos clássicos, as que eu ainda não conhecia proporcionaram uma deliciosa descoberta: a paródia ao ritmos latinos e sua conotação romântica em Just Another Rhumba - com direito a um solo de bongô sensacional e versos hilários como "Ah,ah! At first it was divine-ah / But it turned out a Cuban Frankenstein-ah." (Não, não há nenhuma conotação política aqui, a faixa é do musical "The Goldwyn Follies", de 1935, mais de vinte anos pré-revolução cubana.) A celebração da juventude na persona de uma inconseqüente e namoradeira interiorana em My Cousin in Milwaukee - uma das letras mais graciosas que eu já vi: "Once I visited my cousin / In Milwaukee, U.S.A. / She got boyfriends by the dozen / When she sang in a low-down way.". Em uma estrofe Ira usa os termos squawky (que significa "semelhante a um grasnado, estridente"), e gawky ("tolo, palerma" - O MEC informa: ler o digestivocultural.com também é cultura). Não creio que sejam palavras muito utilizadas pelos americanos, mas onde mais o letrista ia arranjar rimas para "Milwaukee"?
E há a idealização do velho oeste em Sam and Delilah: "It's always that way with passion/ So, cowboy, learn to behave/ Or else you're li'ble to cash in/ With no tombstone on your grave. "
Além da qualidade, estes CDs são um tributo à integração racial; uma mulher negra, dois irmãos judeus, um maestro anglo-saxão: para o talento não há barreiras de nenhum tipo. Rap de protesto não é música negra, é baticum de quem não estudou teoria musical.
Aliás, se Ella estivesse começando nos dias de hoje, provavelmente enfrentaria mais preconceito do que na época em que começou. Não que ela não tenha sofrido: mesmo já célebre, suas excursões ao sul dos EUA com o JATP (Jazz At The Philharmonic), grupo all-star formado por Norman Granz - o homem por trás da gravadora Verve - foram recheadas de mesquinharias por parte dos donos de hotéis e restaurantes locais, que não recebiam bem os negros.
O preconceito racial diminuiu em nossos dias, mas Ella sofreria outro tipo de discriminação: por ser gorda, algo inaceitável para as cantoras nesta era do videoclip, quando a imagem é muito mais importante que a voz.
Se para alguns pesar no bolso comprar a caixa dos Gershwin, pode se consolar com outro disco de Ella, The Harold Arlen Songbook, com arranjos de Billy May, outro parceiro de Sinatra, para quem fez os arranjos de discos como o ótimo Come swing with me!
Voltando ao Gershwin Songbook, o único senão é que a clássica Summertime de Porgy and Bess não consta nem da caixa de CDs nem do livro (não era uma composição só dos Gershwin Brothers, nela entrou também DuBose Heyward, autor do romance que originou tudo). Curiosamente, no livro há uma outra canção, homônima, originalmente composta para o musical Two Little Girls in Blue, mas depois sacada do projeto.
Mas tudo bem, Summertime consta do disco Porgy and Bess que Ella gravou com Louis Armstrong (pela mesma gravadora Verve), e a letra segue abaixo, com seus erros de ortografia satirizando o inglês rústico dos camponeses.
Summertime
Summertime
And de livin is easy
Fish are jumpin
an de cotton is high
oh yo daddy's rich
an yo ma's good lookin
so hush little baby don't you cry
One of dese mournins
You goin to rise up singin
Den you'll spread yo wings
An you'll take the sky
But till that mournin
Deres a nothin can harm you
With daddy an mommy standin by.
Maurício Dias
Rio de Janeiro,
1/4/2003
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