COLUNAS
Sexta-feira,
30/5/2003
Defesa dos Rótulos
Alexandre Soares Silva
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O ódio à simplificação é uma forma de imbecilidade. Você chama um esquerdista de esquerdista e logo aparece alguém para dizer, isso é um reducionismo, ele é muito mais do que uma pessoa de esquerda, ele faz macramé também, aos sábados, e é muito boa pessoa. São pessoas tão sutis que (insistem) não são nem de esquerda, nem de direita, nem de centro; não são crentes em Deus, nem ateus, nem agnósticos; e se calhar não são nem homens, nem mulheres, nem hermafroditas. Isso são rótulos! E eles foram ensinados que rótulos são feios. Devem tirar os rótulos dos potes de maionese, achando isso um reducionismo absurdo, a maionese é muito mais do que uma maionese, é uma coisa muito complexa, ao mesmo tempo gosma e alimento.
Olha, rótulos existem por um motivo. Há pessoas de esquerda. Há pessoas de direita. Há pessoas de centro. Uma pessoa só pode não ser nem de esquerda, nem de direita, nem de centro, se estiver em coma, ou for uma menininha linda de nove anos fazendo desenhos de pôneis num caderno. Uma outra possibilidade ainda é que a pessoa mude tão rapidamente de opinião política, que nunca possa ser flagrada na esquerda, na direita ou no centro - algo como um elétron ideológico. Para o resto da humanidade, rótulos são ok, pare com essa frescura. E me deixe dizer, a expressão ficar rotulando (você fica rotulando, ou pior ainda, você fica aí rotulando) é quase sempre dita por idiotas (outro rótulo mui útil).
Mas passa a simplicidade por burra, sempre, sempre. Esse é o mal de aprender a sutileza muito tarde na vida, que se passa a ficar fanático por ela; de tal forma que qualquer constatação simples, como a de que aquele homem ali é japonês, passa a ser encarada com desprezo. Não é bem assim, diz o amante da sutileza, arqueando os lábios com desdém; você acha mesmo que a vida é simples assim, que ela cabe nos seus parâmetros simplórios? Mas ué, aquele homem é japonês. Japonês como? Ele nasceu no Japão? Liv Ullman nasceu no Japão, você sabia? Você diria que Liv Ullman nasceu no Japão? Ou você quer dizer que aquele homem ali é filho de japoneses? É isso? Mas como você sabe que é filho e não neto? Em que sentido você usou o rótulo "japonês"? Não é simples assim, percebe? Você tem que ver a vida de modo mais inteligente, mais aberto. Não existem japoneses, Alexandre.
Atribuo o ódio aos rótulos ao descobrimento repentino de que nem todos os rótulos foram colocados no vidro certo; e daí a pessoa, toda empolgada, passa a tentar tirar os rótulos de todos os vidros do mundo. Ah, Alexandre, mas você acha mesmo que as pessoas são potes de maionese, para merecer rótulos? Ué, acho. Noto que ninguém reclama de ser rotulado de ser humano, por exemplo. Ninguém reclama de ser rotulado de alto. As pessoas reclamam sobretudo dos rótulos que consideram ruins, como impotente ou fanho. No caso político, especificamente, a pessoa reclama do rótulo que colamos nele porque o rótulo que ela quer ter, o mais cobiçado de todos, é o rótulo de complexo. De esquerda? De direita? De centro? Acha mesmo que eu sou tão simplório? Eu sou muito complexo.
O que a literatura não é: séria
O que escritores não querem dizer, sobretudo os mais pomposos, é que o que fazem é uma variante de moleques brincando com bonequinhos, fazendo o som do soco, pshhhhh; as histórias podem ter ficado mais complexas e menos físicas, os bonequinhos passaram a existir só mentalmente, pode ser que não haja soco, mas é isso. Ana Karênina era um bonequinho que se atirou debaixo de um trem, piuiiiii, tchrammm...., fez Tolstoi na sua escrivaninha, só que de modo mais sutil; e é isso, escritores vestem ternos e enchem o peito e falam em simpósios, e se metem a falar de política, mas basicamente são brincadores de bonequinhos internacionais, que brincam tão bem que foram arrastados de seus quartos em Trinidad Tobago ou de Mensk ou de Tatuí, e se tornaram conhecidos; mas por mais fátuos e pomposos que sejam, por mais que falem da identidade européia ou da narrativa metalingüística, ainda têm os bolsos cheios de bonequinhos. Durante os simpósios intermináveis, em que homens solenes se caceteiam em tcheco, os melhores metem as mãos nos bolsos para sentir que os bonequinhos ainda estão ali, e dizem olá.
Antipatiquices
1) Me parece haver algo de moralmente errado nessas pessoas que vão ao supermercado e fazem amizades no corredor de laticínios. São pessoas simpáticas que não colocam cercas no próprio espírito; e a qualquer momento você encontra dois jardineiros, uma manicure e dois borracheiros dormindo na cozinha de sua psique. Ser simpático é bom, mas respeitar o próprio mistério é melhor ainda. Cada pessoa devia ser reservada e misteriosa como uma mulher de véu. Era para isso que o véu existia; uma lembrança de que as pessoas devem ser sociedades secretas, não clubes de bingo. Coloque cercas. Coloque muros.
2) No paisagismo (li não sei onde) se busca um elemento de surpresa: que depois de um caminho despretensioso de cascalho, ao virar uma curva se veja, de repente, um lago. O charme perfeito devia ser assim: você conhece uma mulher, e ela é antipática; dias depois, ela é gentil, mas fria; e meses depois ela sorri quando você se aproxima, e só quando você se aproxima. O contraste entre a frieza com que ela trata os outros e a alegria que ela reserva para você é o charme mais intenso que existe. Antipatia é necessária; a antipatia é o vison do charme.
3) Um sotaque leve é charminho; pesado é boçalidade. Paulistas ouvem certos atores cariocas com nojo; cariocas ouvem certos apresentadores paulistas com nojo; e todos têm razão. Não é xenofobia - é o reconhecimento instintivo da boçalidade alheia. Ninguém que tenha lido mais de cem livros tem sotaque forte.
Nota do Editor
Alexandre Soares Silva assina hoje o soaressilva.wunderblogs.com, ondes estes textos foram originalmente publicados.
Alexandre Soares Silva
São Paulo,
30/5/2003
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