COLUNAS
Sexta-feira,
27/6/2008
O bom humor do mal-humorado Jamelão
Airton Gontow
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Confesso que apesar dos anos de experiência como jornalista cheguei apreensivo ao primeiro encontro com Jamelão, que iniciaria uma bela trajetória no Bar Brahma. Afinal, poucos artistas carregavam tamanha fama de braveza e mau humor. "Nunca o chame de puxador", advertiram alguns; "Não toque no nome do Cartola", diziam outros.
Com receio aproximei-me daquele senhor elegante, de chapéu e paletó, com elásticos nos dedos. Apresentei-me, pedi para entrevistá-lo e convidei-o para sentar: "Eu não sento. Eu me acomodo. Mas se você gosta de sentar eu posso respeitar as suas preferências", disse Jamelão, para logo abrir um inesquecível e discreto sorriso com os olhos.
Em pouco tempo, enquanto eu buscava dados para meu primeiro release, já que o Bar Brahma era um dos clientes da minha assessoria de imprensa, Jamelão já havia disparado vários outros trocadilhos e brincadeiras, como quando perguntei o que desejava tomar: "Eu não tomo. Eu bebo..."
Conto esta história para desmentir um pouco essa injustificada fama que Jamelão carregou de mal-humorado por toda a sua vida. Era, sim, um homem de personalidade forte, frases incisivas e momentos de incrível falta de paciência. Mas para a maioria dos músicos e amigos que conviveram com ele, assim como para o público que assistia aos seus shows, Jamelão deixará sempre a imagem de um homem bondoso, muito alegre e divertido e, claro, notável cantor.
Como o espaço é curto, deixo de lado a conversa e conto agora algumas das histórias ― engraçadas ou não ― que vivenciei ao lado Jamelão, de quem terei para sempre o orgulho de ter sido amigo.
No Sujinho, de madrugada
Estávamos no Sujinho, tradicional reduto da noite paulistana, com a bisteca mais famosa da cidade. Era a noite do jogo do Internacional de Porto Alegre contra o São Paulo, no Morumbi, pela Taça Libertadores. Percebemos alguns colorados, discretos e disfarçados no meio daquele bar lotado de são-paulinos cabisbaixos pela derrota em casa. Lá pelas três da manhã um grupo se aproximou da mesa: "Jamelão, somos gaúchos e teus fãs. Tu podes dar um autógrafo para a gente?" Jamelão olhou fixo para eles e disparou: "só se vocês acertarem qual é a minha musica predileta!". Cheio de generosidade, deu uma dica: "é do Lupicínio".
"Nervos de Aço"", exclamou um. "Vingança", disse outro. "Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei...", cantarolou um terceiro. Após mais tentativas, ele finalizou a conversa: "Você erraram, não tem autógrafo". Deu um leve pontapé em mim por baixo da mesa e começou a cantarolar: "até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio onde o Grêmio estiver". Os colorados olharam atônitos. Ele abriu um largo sorriso e disse: "sou gremista em Porto Alegre, santista em São Paulo e, principalmente, vascaíno no Rio, mas vocês estão de parabéns pela bela vitória. Para quem dou os autógrafos?" Todos rimos saborosamente...
Jamelão explica por que não dá a mão
De cima do palco, Jamelão não percebeu de imediato o braço estendido. O homem pegou na barra da calça do famoso sambista carioca e puxou-a, com relativa força. Jamelão olhou, olhou, mas não teve a provável reação zangada. Inclinou o corpo e pegou o bilhete. Não satisfeito, o homem burlou a vigilância dos seguranças do bar, subiu no palco e logo se aproximou de Jamelão novamente com a mão estendida.
Temi pelo pior e imaginei que Jamelão empurraria ou no mínimo passaria um pito histórico no intruso do palco sagrado. Jamelão olhou, olhou e, finalmente, estendeu a mão para o aperto pedido pelo homem.
O sujeito desceu do palco e Jamelão prosseguiu cantando: "maestro, músicos, cantores, gente de todas as cores, façam um favor pra mim..." Ao final da canção, Jamelão interrompeu rapidamente os aplausos e disse: "Há pouco eu quase não dei a mão para aquele homem que agora está sentado lá na frente e que subiu aqui no palco. Mas logo imaginei que no dia seguinte os jornais diriam: 'o Jamelão é antipático', 'o Jamelão é mal educado',. 'o Jamelão é isso, o Jamelão é aquilo'. Além disso essa música é tão bonita que não valia a pena interrompê-la. Por isso retribuí o cumprimento, mas agora eu vou contar por que não gosto de dar a mão para ninguém que não conheço: em 1963 eu estava indo para o morro da Mangueira, começou a chover e busquei abrigo na cobertura de um ponto de ônibus. Havia um homem de costas, fazendo xixi em um barranco. Quando ele terminou, virou-se, me viu e gritou: 'Jamelaaaaão!!' E veio em minha direção, com a mão aberta, para me cumprimentar. Então eu falei: 'sai pra lá, você estava pegando no seu e agora que me dar a mão!' Depois disso pensei: sou um homem público. Aquele homem eu vi onde estava com a mão antes de tentar pegar na minha. Mas dos outros eu não vejo. De repente, aquele homem que está agora sentado lá na frente nem saiba que eu estava no bar, tomou umas cervejas a mais, foi ao banheiro, não lavou as mãos, saiu, ouviu a música e perguntou quem estava cantando. Aí veio até o palco, subiu e tive de pegar no dele por tabela. Por isso não pego na mão de ninguém!", disse Jamelão, para ser ovacionado pela platéia.
Cena de grito em um bar da Avenida São João
Na saída do Bar Brahma, situado na esquina mais famosa de São Paulo (Ipiranga com São João) imortalizado por Caetano Veloso em "Sampa", uma garota loira e bonita veio correndo em nossa direção. Eram duas da manhã e ela gritava histericamente. Parou de berrar, pegou na mão de Jamelão e lascou-lhe um beijo. "Sai daqui sua louca. Sai! Fora! Sai daqui!", vociferou o cantor. Ela ficou abalada. As poucas pessoas que restavam na casa olharam assustadas. Ele se justificou: "Adoro mulher. Olho para as mais novinhas e, até, para as
mais velhinhas. Mas não é porque sou preto e velho que vou deixar que uma mulher me trate como se eu fosse um pai de santo. Beijo na mão eu não aceito!"
Jamelão, o antipático
Jamelão recebia para ficar no palco do Bar Brahma cerca de uma hora. Mas gostava de ficar mais. Bem mais. Às vezes o show chegava a duas horas e meia, entre sambas históricos e canções românticas. Até que anunciava a última música, "a mais importante para mim de toda esta noite". O público olhava surpreso, porque Jamelão já havia desfilado os sambas antológicos da Mangueira e músicas como "Nervos de Aço", "Esses Moços" e "Vingança", de Lupicínio; "Matriz e Filial", de Lúcio Cardim; e "As Rosas não Falam", de Cartola (sim, ele cantava Cartola, ao contrário do que muitos jornais disseram e apesar de deixar claro que "não tinha empatia pelo Cartola como pessoa'). Que música seria essa? Aí ele começava a cantarolar uma composição sua: "O papai já vai embora, o papai vai descansar, o relógio está marcando (e ele olhava para o pulso): 01h30! Tá na hora de nanar. O papai já vai embora, o papai vai descansar, vou pra casa da Aurora ou então da Dagmar..."
Depois Jamelão ainda encontrava tempo e disposição para dar autógrafos e tirar fotografias com todos os fãs que assim o desejassem.
Naquele dia, porém, todos esquecemos do tempo e quando vimos já passava das três e a cozinha do Brahma não tinha mais os pratos tão sonhados pelo sambista e sanduíche ele não queria.
Seguimos, a pedido de Jamelão, para o Confraria, outro templo da boa música na capital paulista. Ao entrarmos, o bar inteiro saudou: "Jamelão! Jamelão! Jamelão!". E pediu: "canta! Canta! Canta!" Fomos até o fundo do bar e sentamos. Ou melhor, nos acomodamos. O público continuou: "canta! canta! canta!" Mesmo extenuado, Jamelão, então com 92 anos, foi ao palco e disse: "olha gente, eu já cantei durante 02h30 no Brahma. Então vou cantar só duas músicas, em homenagem a vocês" E soltou seu vozeirão para a alegria geral da nação.
Quando voltou à mesa, iniciou-se uma nova peregrinação de fãs à procura de um autógrafo. Foram uns trinta, em meia hora. Quando o prato do Jamelão chegou, lá pelas quatro da manhã e Jamelão começou a comer um homem se aproximou com uma câmera nas mãos e disse: "Jamelão, vamos tirar uma foto?" Sério, Jamelão disse: "Agora não dá meu filho, eu estou jantando". Ao que o homem respondeu: "Bem que disseram que você é um antipático grosseiro!" Jamelão olhou-me e, resignado, continuou a comer.
Garçom racista
Na Lellis Trattoria Jamelão olha transtornado para o garçom e grita: "o senhor é um racista! É um racista! Vou chamar a polícia'. O funcionário, assustadíssimo, se aproxima e pergunta "mas o que é que fiz?" "O senhor só trouxe cerveja normal. E eu adoro cerveja preta", explicou Jamelão para risada de todos...
O Orkut do Jamelão
Festejamos o aniversário de 93 anos de Jamelão no Consulado Mineiro, restaurante freqüentado por artistas, jornalistas e gente alternativa, na Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Uma jovem em uma mesa próxima não parava de olhar em nossa direção. Jamelão deu o sinal de alerta. "Aquela mulher está olhando fixo para cá. Vai acontecer alguma coisa. Já vi este filme!" Ao final do jantar, quando saíamos da casa, não resisti. Fui até a mesa e perguntei se queria alguma coisa. Ela pediu para falar com Jamelão. Indaguei e ele deu o sinal de positivo. Quando chegou à mesa, ela disse: "Eu sou a Flávia". Ele ficou olhando para ela, estático, sem falar nada. "Sou a sua amiga, Flávia", repetiu. Ele foi sincero: "Desculpe-me, mas não estou lhe reconhecendo". Ela explicou: "sou a Flávia, que fala com você toda a noite pelo Orkut". "Pelo o que?", questionou. "Sua amiga do Orkut", ela insistiu. "Tenho 93 anos, minha filha. Não tenho computador. E se tivesse, você acha que eu perderia minhas noites no Orkut? Alguém está fazendo você de boba e mentindo que sou eu!". Entrou no meu carro, a gargalhadas. Ria tanto, mas tanto, que batia com os punhos no teto do carro. "Orkut! Orkut do Jamelão...essa foi demais"... Saí dirigindo pela noite de São Paulo, feliz por ter presenciado mais uma cena inesquecível ao lado deste grande homem.
Jamelão (última história ― essa eu não vi, mas posso imaginar)
É cedo. Os primeiros raios de sol surgem e um homem velho, de chapéu e paletó, com elásticos nos dedos das mãos, falecido às 04h30, chega à porta do céu. "Quem é", perguntam. Pouco disposto a falar, como tantas vezes durante os 95 anos em que esteve na Terra, ele dispara: "Mangueira teu cenário é uma beleza, que a natureza criou. O morro com seu barracão de zinco, quando amanhece, que esplendor". A Voz exclama admirada: "Jamelão!", "Jamelão!". E diz, mansa e poderosamente: "Pode entrar meu filho. Entra e senta um pouco para descansar da travessia".
Ele olha, olha e, finalmente, responde, na lata: "Eu não sento. Eu me acomodo". E por via das dúvidas ainda recusa o cumprimento com mão...
Nota do Editor
Airton Gontow, 47 anos, é jornalista e cronista.
Airton Gontow
São Paulo,
27/6/2008
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