O escritor Geraldo Carneiro lançou no ano passado um CD
denominado Por Mares Nunca Dantes, título obviamente inspirado no poema "Por Mares Nunca Dantes Navegados", de Luís Vaz de Camões.
Literatura e música se unem para narrar a fictícia vinda - acidental - de
Camões para o Rio de Janeiro.
O CD é, na verdade, a versão do livro, de mesmo nome, lançado por Geraldo
Carneiro em 2000, livro que também deu origem a uma montagem teatral, encenada no Rio de Janeiro em 2002.
A obra, um poema épico-burlesco, é uma homenagem-crítica aos 500 anos do Brasil.
Ao atravessar o Cabo das Tormentas, a caravela de Camões cai numa espécie de
buraco negro e acaba chegando ao Rio de Janeiro, mais de quatro séculos
depois.
O CD possui 12 faixas que vão narrando as andanças do poeta português pela
"cidade maravilhosa".
Um certo realismo fantástico acompanha a história, pois Camões se depara com um engenho que navega pelos ares, é atropelado por uma Besta (que na verdade é um carro), se encanta com a TV, entra em contato com o submundo carioca (traficantes, travestis, prostitutas...), com um pai (de santo) e acaba se apaixonando por Aurora Boreal, uma garota de programa. Um mundo que deve soar muito estranho para uma pessoa que viaja mais de quinhentos anos no tempo!
Um dos momentos interessantes do poema é quando Camões descobre no Real Gabinete Português de Leitura livros de sua autoria. Neste momento, ele percebe que as previsões do babalorixá Pai Creuzo Caveirinha (de que as suas obras seriam reconhecidas) estavam corretas. É o próprio Pai Creuzo que consegue enviar Camões novamente para o seu tempo. Outro momento interessante é quando ele é atropelado pela Besta e confundido com um indigente.
Há uma intrigante mistura entre a linguagem coloquial e o modo de falar, mais simples, das pessoas. O encontro de Camões com o traficante é um exemplo. A nossa herança cultural afro também está muito bem representada na figura do orixá.
A junção entre a instigante obra poética de Geraldo Carneiro e as criativas músicas compostas por Lenine teve como resultado um trabalho de qualidade que merece ser prestigiado.
É uma crítica bem humorada ao Rio de Janeiro, à nossa História e à pouca valorização da nossa Língua Portuguesa. No poema, isso fica evidente num momento em que Camões reclama da falta de conhecimento de poesia por parte dos brasileiros ("Carta a Lisboa").
O elenco é um destaque à parte. Cantores e atores dão vida a ricos personagens. Pedro Paulo Rangel interpreta Luis de Camões; Daniel Dantas, o Executivo e o Traficante; Mariana de Moraes, Aurora Boreal; Jards Macalé, o office-boy Bode Preto; Olívia Byington, o Canto da Sereia; Tonico Pereira, Pai Creuzo Caveirinha, o Babalorixá de Belford Roxo; e Geraldo Carneiro, o Narrador.
Foi acertada a idéia de utilizar a figura de Camões como metáfora do embate entre o novo e o velho. Afinal, Camões é considerado o maior poeta lírico português e seus poemas ora são inovadores, ora revelam uma linguagem tradicional portuguesa.
Por Mares Nunca Dantes pode ser um interessante complemento didático. Obviamente, com a orientação do professor, pois a chamada "licença de criação do autor", acaba suprimindo fatos importantes. Não que essa liberdade seja ruim, mas exige um cuidado do educador na hora de utilizar esse tipo de obra.
O projeto de transportar a poesia para o CD, concretizada pela gravadora Biscoito Fino, merece aplausos. Além de ganhar força com interpretações competentes e com a música de Lenine, facilita o acesso das pessoas portadoras de deficiência visual à obra.
Compreender o conteúdo de Por Mares Nunca Dantes não é muito fácil em virtude da utilização de um português arcaico, mas está aí uma das delícias do trabalho de Geraldo Carneiro: produzir literatura de boa qualidade e oferecer ao público a chance de entrar em contato com a diversidade da nossa língua e com as modificações que ela foi sofrendo nestes 500 anos.
Nanda Rovere,
grato pela indicação desse projeto Geraldo Carneiro.
Cabe fazer, entretanto, uma pequena ressalva: ao contrário do que vocë afirma, Camões jamais escreveu um poema denominado "Por mares nunca dantes navegados". Este texto é o terceiro verso da primeira estrofe de "Os Lusíadas":
"As armas e os barões assinalados/ que da ocidental praia lusitana/ por mares nunca dantes navegados/ passaram ainda além da Taprobana etc."