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Quarta-feira,
6/5/2020
O retalho, de Philippe Lançon
Wellington Machado
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O escritor Paul Auster gosta de utilizar o acaso como fator determinante dos enredos de seus livros e filmes. Ele geralmente trabalha com hipóteses. Por exemplo: se um personagem tivesse se atrasado pra sair de casa num determinado dia, não teria sido atingido por uma marquise. Ou: se ele tivesse virado à esquerda – em vez de seguir em frente -, ou parado para verificar as horas, não teria sido morto em um acidente qualquer etc.
No filme Cortina de Fumaça (1995), escrito e dirigido por Auster, um escritor, ao folhear um álbum de fotografias feitas pelo dono de uma tabacaria, vê sua falecida esposa atravessando a rua exatamente no dia em que fora atingida por uma bala, num tiroteio numa das avenidas principais do Brooklyn. O escritor diz: se ela tivesse se demorado um pouco mais na fila do banco, não teria sido atingida pela bala.
Por obra de um desses acasos, o jornalista francês Philippe Lançon poderia ter tido sorte melhor. No dia 7 de janeiro de 2015, por volta das onze horas da manhã, ele se deparou entre duas possibilidades: ir ao jornal Libération, do qual era colunista cultural, escrever uma coluna sobre uma peça de Shakespeare que assistira no dia anterior; ou participar de uma reunião de pauta do semanário satírico Charlie Hebdo, para o qual escrevia um texto semanal. Escolheu a segunda opção.
Ao chegar no semanário, a reunião já havia começado. Philippe sentou-se ao lado de um amigo desenhista e discutia com ele sobre uma possível ilustração para um artigo que ele pretendia escrever sobre um livro de jazz. Um pacote de biscoitos rodava pela mesa quando dois terroristas invadiram a sala atirando em tudo e em todos, sob os gritos de “Alá, Alá!”.
Philippe Lançon foi atingido violentamente no queixo por uma bala de fuzil. Ele se ajoelhou diante das rajadas de balas e tombou no chão, em meio aos corpos que caíam ao seu lado. Ainda sem entender o que ocorria, ficou quieto, fingindo-se de morto. Só conseguiu ver as duas pernas de um dos terroristas saindo da sala. Ficou ali com o queixo dilacerado (sobrara apenas um bife pendurado), entre os corpos dos amigos e as poças de sangue até a chegada dos socorristas.
O livro O retalho, de Philippe Lançon, narra com riqueza de detalhes o atentado terrorista em Paris e o extenso período de reconstrução e recuperação da mandíbula do autor. Não se trata simplesmente de um livro de memórias, mas também de um livro-reportagem sobre terrorismo e o sistema de saúde francês. O autor narra sua recuperação de forma crua e isenta, sem apelos melodramáticos ou de autosuperação.
Foram 282 dias de internação em que Philippe passou por dois hospitais, por onze cirurgias e longas seções de fisioterapia. Ao ler o livro podemos notar a eficiência do sistema de saúde francês. A reconstrução do queixo de Lançon foi feita numa cirurgia plástica que consistiu em tirar parte do osso da perna (perônio) e implantá-la no rosto. Além de vários pedaços de tecidos moles que foram tirados da perna.
A narrativa de todo esse período de hospitalização é permeada de memórias da convivência de Lançon com seus pais e com o irmão. Para amenizar sua situação decrépita, Philippe lançou mão de personagens da literatura, artes plásticas e peças musicais. Kafka, Beethoven e Proust eram companhias diárias. Não raro, os momentos pré-operatórios eram preenchidos com sonatas de Beethoven, prelúdios de Chopin ou Debussy ou leituras de trechos de Em busca do tempo perdido ou A montanha mágica. Philippe Lançon fez várias amizades com enfermeiras e, principalmente, com sua cirurgiã plástica, com quem dividia seu drama e suas dúvidas existenciais. Tudo por obra do acaso.
Wellington Machado
Belo Horizonte,
6/5/2020
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