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Segunda-feira, 31/3/2003
O império marítimo português para aquém da cultura
Jardel Dias Cavalcanti

mapa português de navegação (sec. XVI)

Quando estive em Paris, anos atrás, percebi que os franceses falavam, além de sua própria língua, inglês, italiano, espanhol e até alemão. Quanto ao português, parece que havia um descaso pela língua de Camões. Mesmo sendo Portugal um país europeu, não havia interesse por sua língua e nem mesmo por sua cultura. Notei o mesmo problema quando estive em Roma. Isso deve acontecer também em outros países europeus.

Portugal surge para os europeus, pelo que me parece, como um país periférico, que não dever ser levado em consideração, devido a sua cultura irrelevante. Para o resto da Europa, de um ponto de vista cultural, é como um país quase "não europeu" que Portugal se afigura.

No Brasil sempre circulou a idéia de que se tivéssemos sido colonizados por ingleses ou alemães, e não por portugueses, seríamos uma nação de verdade. Portugal e os portugueses, sabemos, são motivo de piada para nós.

Um dos capítulos do livro O império marítimo português, de Charles Boxer, editado pela editora Companhias das Letras, trata dessa característica portuguesa: o desdém pelo universo cultural, artístico e intelectual.

A questão acima citada não vem de hoje. Desde padre Antonio Vieira (1608-1697), um português patriota, Portugal é denominado o "cafre da Europa". A falta de curiosidade intelectual parece ser uma das marcas do português. Segundo Boxer, "humanistas destacados do Renascimento português, como João de Barros, Sá de Miranda e Luís de Camões, afirmaram todos em termos quase idênticos que o sangue e os bens materiais contavam mais do que a instrução e a literatura para os seus compatriotas, tanto na metrópole como no ultramar".

O atraso cultural português é notável historicamente. Segundo Adolfo Coelho, o primeiro filólogo português dos tempos modernos, "entre as classes sociais, em Portugal, as atividades intelectuais e científicas, ou mesmo a simples curiosidade a respeito delas, só vieram a se desenvolver tardia e parcamente, em comparação com outros países".

Giacomo Leopardi chegou ao ponto de dizer que "ninguém pensaria em incluir os espanhóis e os portugueses entre os povos civilizados do mundo". As críticas ao atraso intelectual dos portugueses, devido ao fato histórico de que a educação superior esteve quase toda concentrada nas mãos da Igreja, chegou ao ponto de produzir a idéia de que "os padres reduziram Portugal ao nível intelectual dos negros da África e dos índios da América".

Mais terrível, conclui-se, através das pesquisas de Boxer, que os cléricos portugueses da metrópole e do ultramar tinham um baixo nível intelectual, sendo que a educação propiciada pelos jesuítas não acompanhou o ritmo da expansão do conhecimento e da fermentação de idéias do século XVII, tornando-se formalista, pedante e conservadora. Seus objetivos educacionais, que impediam a emancipação intelectual, não ultrapassavam os limites da mais estrita ortodoxia católico-romana.

Segundo Boxer, "tanto professores como alunos em geral eram desestimulados a cultivar juízo crítico independente, ou avançar proposições que não estivessem em tudo apoiadas em fontes autorizadas e reconhecidas, ou que pudessem pôr em dúvida a autoridade e os princípios filosóficos de Aristóteles e São Tomás de Aquino. (...) A ênfase nos estudos clássicos era um dos aspectos do humanismo adotado pelos jesuítas, mas o cultivo entusiástico do latim não os levou a aceitar as idéias filosóficas gregas ou romanas que pudessem se contrapor ao cristianismo católico romano ortodoxo, como definido pelo concílio de Trento."

Foi, inclusive, o ramo português da Inquisição que promulgou a primeira lista de livros proibidos em 1547, sucessivamente aumentada nas edições posteriores, culminando com uma extrema abrangência em 1624. A perseguição aos livros foi uma prática constante, quando não só autores portugueses heréticos ou livre-pensadores eram perseguidos, mas também a importação de livros era cuidadosamente controlada por fiscais encarregados pelo Santo Ofício de receber todos os navios que chegavam e pela inspeção periódica nas livrarias e bibliotecas. Conclusão, a idéia única da Igreja e do Estado foi proibir todos os livros estrangeiros, excetos os de direito canônico, hagiografia e de outros assuntos inofensivos.

Está ai uma das explicações para o fracasso do Renascimento em Portugal. Segundo Boxer, "a imposição de controle tão rígido e eficaz na publicação e circulação de livros, a força permanente da ortodoxia religiosa portuguesa (Portugal foi o único país que aceitou de imediato e sem hesitação todas as decisões finais do Concílio de Trento), a índole naturalmente conservadora do povo - todos esses fatores ajudam a explicar por que o Renascimento teve um florescimento relativamente tão breve em Portugal". Com o poder dos jesuítas e da Inquisição, os ideais erasmianos que floresceram modestamente nas cortes de dom Manuel I e Dom João III foram abandonados em 1580.

Quando sabemos, segundo Boxer, que "nenhuma cultura nacional pode ter crescimento saudável e contínuo sem ser periodicamente fertilizada por uma inspiração e por idéias recentes vindas do exterior", imaginamos o quão provinciano o Estado e a sociedade portuguesa se tornaram. Para exemplificar, enquanto "as descobertas científicas e as idéias filosóficas de Galileu, Bacon, Descartes, Newton, Hobbes, Leibnitz estavam sendo livremente discutidas no Norte da Europa e Itália, os jesuítas de Portugal (assim como os da Espanha) recusavam-se a difundi-las em suas aulas e proibiram expressamente a sua discussão até 1746."

Por isso os portugueses não aproveitaram adequadamente as descobertas científicas para os quais seus navegadores dos séculos XV e XVI haviam dado contribuições tão notáveis. Na feliz avaliação de Boxer, "de pioneiros na vanguarda da teoria e da prática da navegação, os portugueses passaram a retardatários que prosseguiam na retaguarda."

Não só no pensamento português se nota o atraso. Também no universo da arte a coisa caminha na mesma direção. "Uma vez que a influência eclesiástica era tão forte em todas as esferas da educação, durante séculos a pintura portuguesa consagrou-se quase inteiramente à representação de temas religiosos, sendo os retratos laicos muito raros e as paisagens, praticamente desconhecidas". Sendo os patronos das artes os homens da Igreja, somente a pintura religiosa existiu, tanto em Portugal como no Brasil (e não vamos comparar aqui a arte brasileira com a italiana, para não nos envergonharmos: seria covardia comparar o escultor, arquiteto, poeta e pintor Michelângelo com nosso minúsculo Aleijadinho; ou nossa arquitetura de caixinhas de fósforo - de Minas e do nordeste - com a sublime arquitetura européia).

Portugal tratava desdenhosamente os pintores como seres de baixo status social. Francisco de Holanda, amigo português de Michelângelo, queixava-se amargamente da falta de patrocínio dos aristocratas emburrecidos de sua época. Talvez por isso na arte portuguesa não exista um nome como o de Da Vinci, como no Brasil também não o há.

Para além desta questão da mediocridade intelectual dos portugueses, o livro de Charles Boxer trata de forma significativa de várias outras questões. A principal, sem dúvida, a questão dos descobrimentos. Adam Smith escreveu que "a descoberta da América e a da passagem para as Índias orientais, através do cabo da Boa Esperança, são os dois maiores e mais importantes acontecimentos de que se tem registro na história da humanidade". Essa importância, assinala Boxer, também foi dada por Francisco López de Gómara, cronista espanhol, que descrevia os descobrimentos como "o maior acontecimento desde a criação do mundo, depois da encarnação e da morte Daquele que o criou". E em se tratando de descobrimentos, Portugal foi um dos pioneiros "que uniram, para melhor e para pior, os ramos enormemente diversificados da grande família humana".

E quem eram esses descobridores portugueses que abriram o caminho "por mares nunca dantes navegados"? Boxer responde: "Uma nobreza e uma fidalguia turbulentas e traiçoeiras; um clero ignorante e lasso; camponeses e pescadores trabalhadores, mas imbecis; e uma ralé urbana de artífices e empregados diaristas, como a plebe lisboeta descrita pelo maior dos romancistas portugueses, Eça de Queiroz, como "beata, suja e feroz"; tais eram as classes sociais de que advieram os descobridores pioneiros".

Sim, caro leitor, não adianta se assustar, pois foram eles que fundaram a nação que hoje chamamos, sem muita alegria e com pouca honra, de Brasil.

O livro de Boxer é grande, no sentido de uma história total. Trata com competência de questões relativas à economia, política, cultura e mentalidades. Prática abandonada pelos historiadores contemporâneos, que tratam de forma fragmentada e desconexa questões como gênero, mentalidades, política, economia, costumes, etc.; não conseguindo conectar instâncias variadas da cultura histórica, o que é necessário a uma reflexão mais profissional da história, os historiadores contemporâneos tornaram-se superficiais.

O trabalho de Boxer faz parte daquele costume antigo, que consistia em permitir aos pensadores que seus trabalhos amadurecessem em paz e que só depois do amadurecimento completo viessem a público. O contrário do que acontece hoje, quando um excesso de publicações que nada têm a acrescentar insiste em vir à público.

O livro O império marítimo português nos faz sentir saudades das reflexões sobre a história, quando teses não eram feitas a toque de caixa, ao sabor do tempo exigido pelas agências de fomento à pesquisa, para serem esfriadas como cadáveres solitários em gavetas de bibliotecas universitárias jamais visitadas pela sociedade. Talvez porque não mereçam mesmo serem visitadas.

Para ir além




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 31/3/2003

 

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