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Quinta-feira, 10/4/2003 O sexo a serviço da arte Adriana Baggio O senso comum diz que a mulher que faz sexo com um homem que lhe dá dinheiro é prostituta. Mesmo que essa não seja a atividade que garante sua sobrevivência, mesmo que ela tenha outra profissão, mas que eventualmente aja desta maneira, pode ser considerada como prostituta. Mas se essa mulher gostar de fazer sexo com o homem que lhe sustenta? E se os encontros com este homem não forem eventuais, mas tenham uma certa freqüência, obedeçam a certos rituais? E se entre a mulher e o homem houver respeito, atração, admiração? São esses questionamentos que passam pela cabeça de Monica Szabo, personagem do livro A boa fortuna, de Mary Gordon (Bertrand Brasil, 2002, 320 páginas). Monica é uma pintora com trabalhos de qualidade, boa técnica, algum respaldo, mas que não "aconteceu" como artista. Além de pintar ela dá aula em uma faculdade. Seus melhores amigos são o vira-lata Mike e o psiquiatra homossexual Michael, que às vezes servem de inspiração para seus quadros. Monica é uma mulher na faixa dos 50 anos, divorciada, com filhas gêmeas. Um belo dia, Monica vai dar uma palestra na galeria de sua amiga e aborda a relação entre o artista e sua musa, e comenta a falta de "musas" do sexo masculino para as pintoras. Na platéia, um homem de meia-idade, bem-apanhado, levanta-se e oferece-se como musa. Monica e B., como ela passará a chamá-lo até quase o fim do livro, saem da galeria e vão direto para um restaurante chique, depois vão dançar, e depois vão para a fabulosa casa de B. Desde o começo, B. é objetivo e faz logo sua proposta: ele tem muito dinheiro, trabalha com mercado de futuros na bolsa de valores e quer investir em Monica para que ela possa desabrochar como pintora. Ele vai oferecer-lhe tempo, espaço, tranqüilidade e sexo, quando e se ela quiser. Ao mesmo tempo em que Monica fica em dúvida quanto à dignidade da proposta e de seu papel na situação, não consegue deixar de aproveitar o sexo com B., nem o luxo proporcionado pelo seu dinheiro. O sexo é um ponto importante. Tanto para ela, uma mulher de meia-idade e divorciada, quanto para seu amigo Michael, homossexual na mesma faixa etária, conseguir sexo de boa qualidade é difícil. Temos aqui a representação da mulher, do homem, do homossexual. O único que consegue sexo com facilidade é B., o homem, que além de heterossexual, é rico. O relacionamento entre Monica e B. vai se desenvolvendo. Monica, no entanto, não consegue aceitar facilmente a relação. O sexo com ele é bom, ele trata-a com respeito, gentileza, delicadeza. Cozinha, compra presentes, leva-a para passear. Deixa-a sozinha quando ela quer pintar. Monica, incapaz de lidar com o estilo do relacionamento, aos mesmo tempo em que não quer abrir mão dele, boicota B. para ter a ilusão de que, de alguma maneira, ela tem poder sobre ele. O sexo é determinado basicamente por Monica. O sexo só acontece quando ela quer. Mas acontece mais vezes do que ela gostaria, não porque seja ruim, mas porque gostaria de negar esse homem. O relacionamento constrói-se sobre as dificuldades de Monica em lidar com o fato de ser sustentada por B. Mais do que sustentar, B. proporciona a Monica o que ela nunca teria se continuasse na vida anterior: tempo e condições para desenvolver seu talento. Em determinado momento, Monica tem a idéia de representar a figura masculina conforme algumas obras da renascença, onde o Cristo é mostrado num estado de relaxamento que lembra mais um pós-coito do que a morte. Nessa série de telas, B. é seu modelo e inspiração: sua musa. Para realizar seu trabalho, Monica viaja com B. para Milão, para poder ver as telas dos mestres que servirão de base para seu trabalho. Encerradas as telas, num processo no qual Monica é a própria encarnação do artista temperamental, surge uma pintora que não é mais somente uma artista correta com um talento médio, mas uma verdadeira atração. A exposição das telas é um sucesso de crítica, de público e de mercado. Monica vende todas as telas, e seu sucesso abre as portas para que uma mecenas patrocine-a. Monica é, agora, uma mulher rica. E nesse ponto, B. faz uma transação desastrada e perde todo seu dinheiro. A situação se inverteu. Como Monica vai lidar com isso? A boa fortuna é descrito como um romance erótico. Acredito que seja mais do que isso, ou algo diferente disso. É evidente que o erotismo permeia toda a obra. O relacionamento de Monica e B. baseia-se em sexo, pelo menos no princípio. O que leva B. a querer investir em Monica, como ele mesmo diz, é não somente sua vontade de apostar na possibilidade do talento da pintora, mas a atração que sente por ela. Monica, por sua vez, quer negar o seu papel no relacionamento, mas não consegue por estar presa a ele pelo sexo. O livro é mais do que sexo porque aborda outras dicotomias relacionadas aos valores, ao modo de vida da nossa sociedade. Existe a dicotomia arte x dinheiro. Monica não se interessa, ou procura não se interessar pelo trabalho de B., numa tentativa de valorizar sua atividade e de não se "contaminar" com o dinheiro, mesmo sendo esse dinheiro o que possibilita seu desenvolvimento como artista. Ou seja, o dinheiro impedia que seu talento desabrochasse, porque ela tinha que ocupar seu tempo trabalhando para sobreviver. No entanto, é o próprio dinheiro que permite o seu sucesso. É essa dependência financeira que incomoda Monica. Outra dicotomia está presente na relação dever x prazer. Monica não deve aceitar a proposta de B., mas ao mesmo tempo deseja-o, e frui do que o luxo proporciona. E a terceira dicotomia refere-se ao recorrente sexo x amor. O sexo com B. é bom. Ele é gentil, atencioso, quente, e todos os outros adjetivos que possam ser relacionados a um amante ardente. Mas porque a relação é baseada em sexo, parece não haver espaço para o amor. A palavra praticamente não é utilizada em todo livro, mas será que respeito, dedicação, prazer, gentileza e admiração valem menos do que amor? A boa fortuna mostra a visão de uma mulher que não sabe direito como se posicionar numa relação baseada em valores diferentes daqueles que consideramos como positivos. Sexo ou amor, arte ou dinheiro, dever ou prazer? Tudo isso se explica quando percebemos a presença sutil da religiosidade nas tramas da história. Esta participação é manifestada mais claramente quando alguns ativistas católicos protestam em frente à galeria que expõe as obras de Monica. É como se as dúvidas da consciência da pintora saíssem do âmbito da sua cabeça e se concretizassem. Monica resiste: na sua arte, no seu relacionamento não-convencional, na sua nova maneira de aproveitar a vida. Ela precisou libertar-se para poder crescer. O prêmio, o reconhecimento, veio pelas mãos dos pecados: a luxúria, a riqueza, a individualidade, o prazer. Mesmo Monica não sendo uma boa menina, ela já está no céu. Para ir além Adriana Baggio |
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