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Quarta-feira, 23/4/2003
O Apanhador no Campo de Centeio
Alessandro Silva

A Editora do Autor está relançando Salinger.

Salinger foi um escritor norte-americano que escreveu "O Apanhador no Campo de Centeio". Quando fui comprar o livro, o vendedor me disse:

- O livro ficou famoso porque o cara que matou o Jonh Lennon estava com ele debaixo do braço.

Não obstante, a morte de um pop star não rejubila o verdadeiro mundo da literatura. Quem lê sabe.

O narrador da história tem dezessete anos de idade e está tentando nos mostrar porque a escola é uma porcaria.

Ele foi expulso do colégio, é domingo, e ele aguarda não sem apreensão a "bomba" chegar aos seus pais. A quarta-feira próxima é o dia que deve deixar a escola.

É um "tempo morto" e naturalmente um tempo que merece ser esbanjado.

O garoto decide que não deve aguardar sentado; que deve dar umas bandas por aí, hospedar-se num hotel, beber um drinque numa boate e divertir-se com alguma prostituta.

É um garoto cheio da nota e o mundo adulto da luxúria e da embriaguez cinicamente abre-se para ele.

Mas não é um jovem comum. Estamos diante de um poeta em potencial; de um jovem muito estranho, autêntico, atormentado pelo comodismo dos normais e disposto a cair fora.

O garoto abomina cinema, atletismo, narcisismo ou qualquer outra vulgaridade. E bebe e fuma como um predador anêmico.

Não, ele não é um homossexual em busca de sua identidade.

Ele ama as garotas e as respeita como um verdadeiro cavalheiro. Quando vê um palavrão pichado no muro de uma escola ele quer apagá-lo. E aqueles caras que só pensam em sexo ele tacha friamente: idiotas, imbecis ou trouxas - cada qual com sua especificidade, para dizer como Samuel Beckett.

Seu herói imaginário é um derrotado, um garoto que acabou saltando a janela do prédio da escola para enfrentar os estudantes machões.

O narrador não teme confessar que é um covarde que não consegue sequer defender-se de seus colegas de escola. Nem sequer a coragem para dar um soco num camarada inegavelmente "folgado".

A sinceridade com que conta sua história é comovente. Eis aqui o elemento cômico em sua pureza. Vamos rir muito. As situações são narradas de modo naturalista.

Por a obra estar eivada daquele inconformismo romântico pode ser alvo de preconceitos, aqui cabe uma advertência: não a subestimemos. Devemos tomar cuidado no julgar, pois aquele espírito de juventude eterna que caracteriza o clássico da literatura está presente. Seu romantismo é poderoso e diante dele, diante do inconformismo do jovem narrador, nenhuma razão fica de pé.

Lembremos que "As Flores do Mal" foi rejeitada a princípio. Aquele romântico sui generis que foi Baudelaire naturalmente não foi sempre compreendido. Muita água rolou sob a ponte do Sena até que os franceses começassem a entender as reais necessidades de expressão daquele poeta sofrido e angustiado.

Diante da lógica a atitude romântica é sempre suspeita. Mas há sutilezas na obra de Salinger e suas imagens nos rogam transcendência. Aliás, a associação da obra de Salinger com os mitos criados em torno dos poetas franceses simbolistas é inevitável. Primeiramente porque em "O Apanhador no Campo de Centeio" temos a oportunidade de conjeturar a vida de um poeta adolescente e segundo porque sem dúvida a obra requer muitas concessões do racionalismo para ser aceita plenamente.

Um ligeiro esforço e podemos identificar os dezessete anos do narrador com a revolta de Arthur Rimbaud. E em verdade o mito dessa voz de revolta que emudeceu está presente na fala final do narrador. Mas, em seu caso, não se trata de uma transfiguração do passado com direito a esquecimento de causas e efeitos de uma existência poética pregressa; trata-se antes de terminar no divã para "adaptar-se".

Há algo de belíssimo nessa obra e inevitavelmente influirei na leitura dos ainda "não contemplados". Trata-se do enigmático título da obra, que merece mais do que uma explicação, senão aplausos prolongados.

Descobrimos que "O Apanhador no Campo de Centeio" é alusão aos versos de uma canção escrita pelo poeta Robert Burns. Quando o garoto é interrogado pela irmã acerca de sua rebeldia perpétua, sobre porque se "auto-destruía" daquele modo e porque não gostava de nada, ele, então angustiado e particularmente melindrado evoca a imagem criada por Burns identificando-a como metáfora de sua aspiração: o garoto imagina o campo de centeio repleto de crianças brincando e a si na borda do abismo apanhando as que caíam!

Ele mesmo está "caindo", lhe revela mais tarde um seu antigo professor de inglês, tentando fazer-lhe ver a sua "anormalidade". Não obstante, essa queda não é triada; o velho professor não diz o que quer dizer com essa "queda" e nós mesmo tendemos a aceitar a queda do ponto de vista da degeneração social. Contudo, é a um outro tipo de queda que devemos nos reportar para dar sentido ao destino desse adolescente.

Em "Angústia da Influência", Harold Bloom definiu sua teoria acerca da ontogenia poética. Bloom serve-se de alusões freqüentes ao mito da perda do paraíso para justificar uma etapa do processo de formação do poeta. Milton e a Bíblia ensejam as sutilezas de que necessita o crítico norte-americano para explicar sua hipótese. Quando fala de queda inevitavelmente quer dizer com isso desagregação social; inevitavelmente, diante da obra de Salinger, identificamos essa etapa da ontogenia poética na jovem vida de dezessete anos.

Quanto ao autor, acredito que devamos identificá-lo com sua personagem, pois a reserva é uma categoria psicológica que pode ser explicada pela frustração. Salinger jovem naturalmente viu recalcada sua persona poética diante das "muralhas do embrutecimento" e talvez tenha sido tão frágil quanto seu personagem, a ponto de não tentar nada contra a brutalidade dos fatos com que se apresenta a vida moderna além da auto-destruição.

Em verdade, Salinger é mais que seu personagem. Se guinarmos ao ponto de vista moral, Salinger é por extensão dessa personagem o próprio Rimbaud.

Estudos sobre Salinger devem abundar; igualmente sobre Rimbaud. Contudo não há grandes razões para nos aprofundarmos nos detalhes biográficos. "Iluminuras" ainda crepita em nossos corações com suprema afabilidade. "O Apanhador no Campo de Centeio" é obra de sublime jocosidade.

Para ir além




Alessandro Silva
São Paulo, 23/4/2003

 

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