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Segunda-feira, 28/4/2003 Iraque: plano de guerra Jardel Dias Cavalcanti "Pobres miseráveis desnudos, onde quer que estejam, Que aguardam o golpe dessa impiedosa tormenta, Como suas cabeças desabrigadas, seus ventres vazios, Seus rotos e imundos farrapos poderão protegê-los De intempéries como estas?" (Rei Lear - Shakespeare) Segundo anota Robert Kurz, "a economia deficitária dos EUA é condicionada por uma economia deficitária externa. Desde o final dos anos 70, o déficit na balança comercial e de capital da superpotência ocidental cresce continuamente. Os Estados Unidos consomem cada vez mais, ao passo que produzem cada vez menos; eles compram a crédito, sem poupar. Eles sorvem o capital monetário do mundo, para desse modo sorver os fluxos de mercadoria do mundo". Se aceitamos essa tese, que se traduz nos termos de que "a debilidade da última potência mundial é também a debilidade da Europa e a de todas as demais regiões do mundo", podemos crer que o capital mundial está entrando numa enorme crise. Dentro deste contexto, o que significa a guerra contra o Iraque? Significa que os EUA, dentro de sua crise atual, está buscando retomar sua posição de hegemonia imperial econômica e, conseqüentemente, a salvação da economia mundial. E no mundo da política imperial, segundo Kurz, "o melhor é sempre aquele que pode mostrar o maior porrete para o golpe fatal". Então nos perguntamos: esta é uma guerra justa? Para aprofundar a questão precisamos pensar um pouco no próprio motor do capitalismo. E nosso velho Marx, que via "a classe burguesa com a mais revolucionária da história", pois foram "os primeiros a mostrar do que a atividade humana é capaz", nos dá algumas pistas. "O constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões veneráveis, são descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens". (Marx - O Manifesto Comunista) Dentro deste ponto de vista, como ficamos nós, os membros da sociedade capitalista? Ficamos em uma situação estranha e paradoxal. Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. "Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação", em vez de subverter essa sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o desenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiram: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade tão somente significa entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma. Pensando dessa forma poderíamos justificar um dos aspectos mais bárbaros da história da "vontade de poder" humana: a guerra. E, claro, apoiaríamos a guerra contra o Iraque. Mas existem questões que vão além deste raciocínio, e é bom que saibamos quais são. Este é o projeto do livro Iraque: plano de guerra, de Milan Raí, editado no calor dos acontecimentos, pela Editora Bertrand Brasil. Uma vasta gama de questões são discutidas no livro, desde o problema do controle do petróleo da região iraquiana até as políticas de governabilidade da área por setores manipulados pelo poder imperial americano. A questão mais importante do livro, sem dúvida, é expor as formas de manipulação, através da propaganda oficial, da opinião pública sobre a legitimidade da guerra. Táticas que se baseiam na "Nova concepção estratégica", da ONU, que prevê intervenções militares e ataques preventivos, uso da idéia de um combate a redes de terrorismo, destruição de arsenal de guerra biológicos ou nucleares, etc. São estas as bases centrais da justificativa. No capítulo sobre a reação ao terrorismo, fortemente exaltada pela maioria americana depois do "11 de Setembro", existe um ensaio de Noam Chomsky, denominado "A Reação Sensata ao Terrorismo", onde o autor apresenta várias contradições na política/doutrina Bush de "prevenção terrorista" com maciços bombardeios. A principal delas é a discordância americana com a Assembléia-Geral da ONU na questão dos povos submetidos a regimes racistas e colonialistas e à ocupação estrangeira, no qual os EUA "entendiam que se tratava de uma justificativa à resistência contra o regime sul-africano, um aliado dos EUA responsável pela morte de 1,5 milhão de pessoas e por prejuízos no valor de 60 bilhões de dólares causados aos países vizinhos, apenas entre 1980-88, sem contar o que causou de prejuízos ao próprio país." O livro Iraque: plano de guerra traz inúmeras informações precisas sobre questões das políticas internacionais referentes ao oriente médio e sua história, as várias políticas internacionais de controle da região são discutidas sistematicamente, aponta as contradições das razões da guerra contra o Iraque, o universo das sanções internacionais à região, como dá voz a uma comunidade internacional contrária à guerra, formada por políticos, intelectuais, jornalistas, setores do poder americano e militares de vários países - muitas dessas opiniões apareceram na mídia, outras foram cerceadas. É um livro que nos ajuda a entender as razões dos propósitos desta guerra, nos faz comungar com o pensamento de figuras internas aos conflitos e com aqueles se opõem à guerra por questões humanitárias, já que não vêm justificativa nenhuma no assassinato de milhares de crianças, civis, jovens soldados, apenas porque o capital deve se reproduzir na busca da mais-valia colonialista. Além de apresentar depoimentos importantes, com os de figuras com o ex-presidente Carter, traz documentos que não circulam na mídia brasileira, enriquecendo quem quer aprofundar-se na questão da guerra do Iraque. Um destes documentos é o "Acordo petróleo-por-comida", proposto nos anos 90 por Londres e Washington, rejeitado pelo Iraque por trazer no seu cerne um projeto de sanção econômica. Uma das diretrizes deste acordo diz o seguinte: "O Iraque tem permissão de vender petróleo no mercado aberto. O comprador deposita o dinheiro numa conta especial, sob tutela da ONU, num banco em Nova York. O Iraque não tem acesso direto ao dinheiro auferido com a venda do petróleo, mas pode encomendar mercadorias civis a serem pagas pela conta sob tutela. Do montante auferido, 59% estão disponíveis para compras humanitárias, para o sul e o centro, controlados por Bagdá; 13% vão para o norte, curdo; 25% são desviados para compensações de guerra; 2,2% cobrem custos de administração da ONU, e 0,8% sustenta a UNMOVIC." Segundo o autor, um acordo humilhante como esse foi elaborado meticulosamente para ser rejeitado. Não era um acordo humanitário, era uma arma de propaganda, bem-sucedida, para desencadear o ataque que os EUA há muito planejavam ao Iraque. A guerra está aí, com disparos de mísseis e bombas norte-americanas e inglesas. Com ela, além do conjunto de mortes, a deteriorização da infra-estrutura civil e militar do Iraque. Os fabricantes de armas e o império americano dormirão tranqüilos, enquanto a humanidade, como um todo, permanecerá envolta em mais um pesadelo (com as tradicionais cenas de famílias enterrando cadáveres em valas comuns ou em caixões com jovens soldados envoltos em bandeiras do império anglo-americano). É a péssima primeira parte do primeiro pesadelo deste século que se inicia. Quanto ao desdobramento, talvez outros pesadelos como o de 11 de setembro se repitam vindo a se juntar aos terríveis sonhos já existentes. Voltando a Marx: a que levará esta eterna crise do capital, que volta e meia ronda o mundo produzindo incessantes guerras colonialistas? Marx dizia que o periódico retorno das crises poriam em questão a existência de toda a sociedade burguesa, cada vez mais radicalmente. Nessas crises recorrentes "grande parte não só dos produtos existentes, mas das forças produtivas anteriormente criadas, é sistematicamente destruída". Mas, dada a capacidade burguesa de tirar proveito da destruição e do caos, não há qualquer razão aparente para que essas crises não possam prosseguir numa espiral interminável, destruindo pessoas, famílias, corporações, cidades, porém deixando intactas as estruturas e o poder da vida social burguesa. O capitalismo está se revolucionando a ponto de chegar onde Marx previu: as forças coletivas seriam condenadas à obsolecência. Basta ver que o grande número de protestos pelo mundo, a fim de impedir a guerra, não foi ouvido por aqueles que foram eleitos como representantes dessas pessoas. A guerra foi concretizada. Segundo Marx, os operários, e conseqüentemente suas associações (sindicatos, associações humanistas, etc), seriam "fruto de uma moda passageira..., nada mais que uma invenção dos tempos modernos, como o próprio maquinário." Como poderão eventuais vínculos humanos remanescentes crescer e frutificar num solo assim precário e movente? Para ir além Visite também o site do grupo pacifista ARROW: nonviolence.org/vitw Jardel Dias Cavalcanti |
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