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Sexta-feira, 25/4/2003 Frida Kahlo e Diego Rivera nas telas Julio Daio Borges "La tragedia es lo más ridículo que tiene 'el hombre' pero estoy segura, de que los animales, aunque 'sufren', no exiben su 'pena' en 'teatros' abiertos, ni 'cerrados' (los 'hogares'). Y su dolor es más cierto que cualquier imagen que pueda cada hombre 'representar' o sentir como dolorosa." (Diário de Frida Kahlo) O cinema, como toda arte, está à espera de que lhe atribuam significado. E por ser consumido hoje como só (talvez) a música, é fonte de controvérsias e de polêmicas acaloradas. Um filme, que pode representar muito para uma pessoa, pode não representar nada para outra; um longa, que pode arrancar duas horas de lágrimas de um espectador, pode provocar total indiferença em outro, ou até mesmo ódio em um terceiro (quem sabe...). É comum assistir a aquele filme e esperar que ele desperte os mesmos sentimentos (ou muito similares) em alguém próximo, que se pensa conhecer muito bem. Mas, não: eis que a reação vem esmorecida, provavelmente prejudicada pelo excesso de expectativa e pela pressão que normalmente se coloca nessas horas. Então a saída, para o aparente "fiasco", é tentar racionalizar os prós e os contras - e se justificar, perante o interlocutor: por que aquela média de 100 minutos significou tanto para um e tão pouco para outro? Assim fazem também os críticos especializados. Mas alguns, mais espertos (ou talvez mais preguiçosos), optam por ressaltar os defeitos antes mesmo de que a fita entre em cartaz. Desse modo, se alguém do público levantar alguma objeção, ou mesmo refugar a produção in totum, o jornalista que apostou na abordagem pessimista está a salvo: afinal, ele não recomendou aquele filme amplamente, enumerando em sua resenha uma diligente lista de "falhas". Já o outro, que se apaixonou pela fita e que destilou uma série de elogios derramados, passa por "alienado" (no mínimo, mal informado): afinal de contas, como pôde se encantar com um tremendo fracasso de crítica (aqueles sujeitos que, deliberadamente ou não, meteram o pau) e de público (aqueles outros que, em 99% dos casos, ovacionaram um blockbuster ou uma "nova onda" sem graça)? Ou seja: como ele pôde enfrentar esse consenso, quando "o mundo" decidiu que aquele título não prestava? (Nem precisa dizer que, na próxima, vai procurar demolir tudo o que encontrar, como os demais.) Todo esse preâmbulo para justificar um filme como Frida, de Julie Taymor, que simplesmente não precisa se justificar. Para começar, pode ser abordado de vários ângulos (o pessoal, o artístico, o político), mas a "crítica especializada" preferiu a abordagem descritiva (a mais insípida que há), centrando fogo (como de hábito) nos aspectos técnicos que mais incomodaram. Mas deveríamos, aqui, aboli-la, e estabelecer um outro patamar de interpretação, se quisermos avançar. Para início de conversa, ninguém notou, na história, as acachapantes semelhanças entre o México e o Brasil (apesar do esforço, por parte da nossa intelligentsia, em pairar acima da América Latina: em algum lugar entre a Europa e os Estados Unidos [se é que estes últimos merecem ser considerados]). Depois, não obstante todo o esquematismo (inerente à sétima arte), os paralelos que se pode traçar entre as etapas da vida de uma artista mexicana e as mesmas etapas da vida de um artista brasileiro. Por último, o humanismo presente na fita (para além do sentimentalismo), destacando o que há de universal nas relações amorosas. Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu a 6 de julho de 1907, filha de um fotógrafo que trabalhava para o governo, Gillermo Kahlo, e de uma mãe que considerava "fria" e "cruel", Matilde Calderón. Seu nome, Frida, remete diretamente à herança do pai, um judeu alemão que, apesar dos pesares, contraiu matrimônio com uma católica fervorosa. A pintora, bipartida desde as origens, vivenciaria, no México, a cisão entre uma família de ambições aristocráticas ("burguesas", segundo a terminologia da época) e um país eminentemente agrário, com um forte componente multirracial (indígena, mais do que qualquer coisa). A simbologia desse conflito interno, de personalidade, ficaria mais notoriamente representado no quadro Las dos Fridas (1939), em que a artista se retrata, ao mesmo tempo, como a colonizadora espanhola (à esquerda) e como a índia folclórica (à direita). No longa, é emblemática a cena dos preparativos de seu casamento, quando Frida, de noiva, troca seus trajes com os de sua mucama; e, durante a festa, abre o plano principal com outro quatro, Frida y Diego (1931), onde estão retratados os noivos. O encontro com Diego Rivera, o segundo acidente mais trágico de sua vida (com afirma em um dado momento), aconteceria depois de um primeiro, a bordo de um tranvía (mistura de bonde com ônibus, o mesmo que atropelou, na Espanha, Gaudí). No filme, a meninota de 16 anos que se deslocava a carrera pelos corredores da Escuela Nacional Preparatoria (tencionava cursar medicina), e que precocemente cometia estrepolias sexuais com o namorado, Alejandro Gómez Arias, de repente, se vê confinada a uma cama, a uma coleção de espartilhos e, posteriormente, a uma cadeira de rodas. Na separação forçada do mundo exterior, e da rejeição do primeiro amor (Alejandro anunciaria sua mudança para a Europa), forja-se a artista plástica - pois, como afirma Goethe, o caráter se forma em sociedade, mas o talento, na solidão. A família então assimilaria a sua inclinação pelas artes através de dois gestos bem marcados: primeiro, pela construção de um cavalete especialmente concebido para que Frida pudesse pintar sem se levantar; e segundo, pela instalação de um espelho no dossel da cama, permitindo que compusesse seus primeiros auto-retratos. Daí, a pintora evoluiria, em paralelo à sua recuperação (segundo a fita), para o retrato de cada um dos membros de sua família. Esse intimismo, da preferência pelo cotidiano, pelo dia-a-dia, acompanharia a artista que, pode-se dizer, cunharia um quadro para cada fase decisiva de sua vida. Contrastando, como em todo casal, com os anseios de grandiosidade e glória de seu marido, Diego, que se lançaria à confecção de vastos murais, com temática social e revolucionária. Em Frida, a sugestão das diferenças entre o "masculino" e o "feminino" é, às vezes, delicada, e, outras vezes, avassaladora. Como quando, por exemplo, se percebe a diferença de altura entre ele e ela, a oposição entre o corpo frágil de Kahlo (sujeito a incessantes intervenções médicas) e o corpanzil insaciável de Rivera, com apetite para devorar o planeta - o mesmo que, de acordo com o filme, conduziu-o até Nova York, até Nelson Rockefeller. A aparente brutalidade de Diego faria a mãe de Frida comentar (desgostosa com a união dos dois): - "É o casamento de um elefante com uma pomba". A honestidade bonacheirona do muralista também se faria risível, no instante em que ele pediria a mão da intrépida retratista, prometendo não "fidelidade" mas sim "lealdade". (Prometendo e não cumprindo: Rivera, nos seus arroubos de mujeriego, não perdoaria nem mesmo a irmã de Kahlo, Cristina.) Ou na ocasião em que a jovem artífice aborda o consagrado artista e lhe pede uma opinião sincera sobre suas telas. Diego, no melhor estilo fatalista-vocacional, sentencia: - "Se você for pintora de verdade, nunca vai conseguir parar de pintar: vai pintar até morrer". Ao que Frida retruca al tiro: - "Mas eu preciso trabalhar para sustentar meus pais [eis a família aí, novamente] e, se não for boa o suficiente, preciso me dedicar a outra profissão". (Lógico que era boa. Tanto que o surrealista André Breton viria ao México implorar para que expusesse em Paris; o Louvre aceitaria uma pintura sua [a primeira da América Latina]; e os Estados Unidos a homenageariam com um selo comemorativo [o primeiro dedicado a uma mulher hispânica].) Mas Frida se faria célebre antes que a consagração a alcançasse (apenas na década de 80 do século XX). Estamos falando do tempo em que, já separada de Diego, abrigaria na Casa Rosa (hoje Casa Azul, de seus pais) um refugiado ilustre: Leon Trotski. Para quem, antes dos 20 anos, discutia o viés político de Hegel (tendo passado por Marx) e lia Schopenhauer, alternando-o com Spengler, fluentemente, a visita de um dos heróis da revolução russa tinha algo de grandiloqüente. No filme, é a seqüência em que a história ganha novo fôlego, alimentada pela chegada de um dos maiores intelectuais dos 1900s e pelo espírito de aventura que pairava no ar, ao se dar guarida a um dos inimigos mais perseguidos por Stalin. Da convivência de uma mente embotada pelo sofrimento e pela inteligência com uma artista original, quase primitiva e ainda fértil, nasceria um caso amoroso que, pelo que se pode concluir, custaria a vida de Leon. É Natalia Sedova, sua esposa, que percebe o arranjo, e decreta uma mudança para um hotel. A mesma que lhes cairia fatal. Frida, então, é presa e interrogada (a respeito do assassinato do revolucionário) e, na cadeia, sofre de gangrena, tendo os dedos dos pés amputados. No fim, casar-se-ia uma segunda vez com Rivera, que seguiria venerando-a mesmo durante a dependência de morfina e a impossibilidade permanente de andar (teria ainda uma das pernas amputadas). O que o longa não mostra é que esses últimos anos seriam os mais produtivos de Frida Kahlo (ela vivia implorando aos médicos que a remendassem a fim de voltar a pintar). Participaria, nesse estado, da primeira exposição de sua obra em seu próprio país, onde um Diego comovido reconheceria a companheira como "o maior acontecimento de sua vida". Cada vez mais debilitada, "Friducha" chamaria o seu "Pánzon", no meio da noite, e o presentearia com um anel por seus 25 anos de casados (contabilizando idas e vindas). Rivera, sem entender, reagiria dizendo que a data não era exatamente aquela (faltava duas semanas), mas Kahlo insistiria em festejar suas bodas de prata. De algum modo, sabia que não lhe restava muito mais: faleceria naquela mesma noite, a 13 de julho de 1954. Por detrás das câmeras Frida, o filme, foi baseado na biografia com título homônimo de Hayden Herrera, considerado pela produtora Nancy Hardin "o retrato narrativo definitivo da artista". Sua realização se deve ao seu empenho e também ao de Salma Hayek, igualmente produtora e atriz (de origem mexicana), que desde os 12 anos de idade ambicionava interpretar Frida Kahlo. Hardin adquiriu os direitos do livro de Herrera na ocasião de seu lançamento, em 1983, mas só conseguiu despertar interesse por parte dos estúdios de cinema nos anos 90. Foi em 1997 que a Trimark Pictures, uma companhia independente, colocou Salma e Nancy em contato (a primeira já havia estreado Um Drink no inferno [From Dusk Till Dawn, 1996] e A balada do pistoleiro [Desperado, 1995], ambos de Robert Rodriguez). Salma Hayek foi pessoalmente procurar Dolores Olmedo, ex-amante de Diego Rivera e administradora do espólio do casal, que bem impressionada lhe cedeu os direitos de reprodução das pinturas de Frida Kahlo, por cinco anos, falecendo em 2002. A partir dessa conquista, Hayek pôs-se a reunir o elenco: fez questão de Alfred Molina (Diego); era amiga pessoal de Antonio Banderas (Siqueiros) e Edward Norton (Rockefeller); já havia contracenado com Patricia Reyes Spíndola (Matilde), também como mãe e filha, na televisão; e conseguiu aliciar Geoffrey Rush (Trotski), sem nunca havê-lo visto antes, num vôo para Las Vegas. Com o que considerava um "casting de sonhos", Salma Hayek logrou convencer Harvey Weinstein, da Miramax, que se dispôs a financiar o projeto, indicando a diretora Julie Taymor. Esta última trabalhou intensamente junto a Elliot Goldenthal, compositor da trilha sonora, que é responsável por muito da "amarração" do longa, e que conta ainda com Chavela Vargas, Lila Downs e Caetano Veloso. As filmagens se iniciaram em 2001. O resto é história. Para ir além
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