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Terça-feira, 29/4/2003 Ocampo: entre o surrealismo e a melancolia Marcelo Barbão Não há passeio mais maravilhoso para uma tarde de domingo do que caminhar pelos sebos da Avenida Corrientes perto da esquina com a 9 de Julio. Longe da sofisticação da mesma rua perto do micro-centro, você encontra qualidade a preço acessível. Algo muito importante nesses dias de crise. E foi numa dessas lojas, onde a bagunça pode fazer com que você "perca" horas desfazendo pilhas e limpando a poeira que eu descobri um pequeno livro chamado Antología Esencial da escritora Silvina Ocampo. Marcado pela predominância masculina, um nome feminino na literatura latino-americana já é, por si só, algo curioso. Ainda mais se tiver sido uma parceira da dupla mais importante da literatura argentina: Borges e Bioy Casares (na verdade, foi casada com este por mais de 40 anos). Além disso, ganhadora de vários prêmios como poeta e contista. Foi com este pequeno tesouro, publicado em 2001 pelo jornal La Nación, em minhas mãos que sai da loja e vim direto para a poltrona. Quando levantei, estava completamente apaixonado por essa mulher incrível. Ocampo consegue unificar, como poucos, o realismo maravilhoso de autores como Borges e Cortazar, com a melancolia e a tristeza que marcam o "espírito" do povo argentino e do cone sul. Seus contos estão repletos de morte, abandono e sofrimento. Mas não são simples histórias emocionais e lacrimosas. Pelo contrário, esses elementos servem para pontuar ainda mais um clima de absurdo, de ilogicidade e de descontrole. Como no conto "La red" onde Ocampo mergulha fundo no sentimento de culpa e na vingança. É impressionante a imagem de uma mariposa fugindo de uma coleção de insetos e voando ainda com o alfinete nas suas entranhas, preparando sua vingança. Ou "Las fotografías" que conta os angustiantes minutos finais de uma moribunda enquanto seus parentes preparam uma festa ao redor de sua cama. O humor distorcido encontra-se por todos os contos, como no "El vestido de terciopelo" ou em "Los sueños de Leopoldina". Mas nos contos em que a maldade ou a busca pelo mal estão muito evidentes, sem disfarces ou metáforas, podemos ver a força da narrativa da autora, como em "La paciente y el médico" e "Las vestiduras peligrosas". No primeiro, um médico é perseguido por uma paciente apaixonada que inventa doenças só para estar junto do objeto de sua paixão. Na disputa entre a ética médica e o fim de uma perseguição implacável, o médico decide caminhar vagarosamente quando é chamado para salvar a garota que tenta um suicídio desesperado. Em "Las vestiduras peligrosas", uma costureira que desafia as convenções morais da sociedade, mas não é punida por isso. Cada vez, suas roupas são mais ousadas, mas são outras mulheres, distantes, que são violentadas e assassinadas por isso. Uma busca estranha por uma autopunição que não chega. Até que ela resolve deixar de lado os vestidos decotados e as transparências, e decide sair de casa vestindo um terno masculino... E, como não poderia deixar de ser, em outros momentos Ocampo simplesmente nos deixa atônitos frente a pequenas e singelas histórias como a maravilhosa "Los celosos" que é quase como uma piada, na qual um marido ciumento desconfiado de sua mulher parece não ver que por baixo dos quilos de maquilagem, lentes, cílios postiços e mais uma dezena de aparatos, ela é horrível. Os contos de Silvina Ocampo são tão bons, tão instigadores, que a sensação, quando acabei este pequeno livro, foi de cansaço. Como se as minhas energias tivessem sido sugadas pela genialidade destes contos. E eu nem entrei nos poemas que, aliás, foram os principais responsáveis pelas premiações mais do que merecidas que ela ganhou. Ah, pobres de nós brasileiros que nunca tivemos um livro de Silvina Ocampo traduzido para o português. Para ir alémLa furia y otros cuentos Silvina Ocampo Ed. Alianza R$ 50,47 (na livraria Cultura) Marcelo Barbão |
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