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Quinta-feira, 1/5/2003 A Garota de Rosa-Shocking Nemo Nox Como dizia Gérard Lenne, o cinema não cria mitos novos porque não existem mitos novos, existem apenas mitos velhos sob novas formas. Mais uma prova disto é o filme A Garota de Rosa-Shocking (Pretty in Pink), de 1986, escrito e co-produzido por John Hughes e dirigido por Howard Deutch. O mito em questão é o da Gata Borralheira: menina pobre encontra príncipe encantado, apaixonam-se e, depois de alguns desentendimentos, vivem felizes para sempre. Ou pelo menos até que as luzes do cinema se acendam. A nova Gata Borralheira (que poderia ser aqui rebatizada de Gatinha Trapeira) é Andy (interpretada por Molly Ringwald, a ruivinha de Gatinhas e Gatões), uma típica adolescente classe média baixa dos EUA. Ela trabalha numa loja de discos e freqüenta, graças a uma bolsa de estudos, uma escola de meninos ricos. Sua maneira de vestir, usando roupas antigas passadas por um processo de reengenharia, num estilo que lembra um pouco a pop star Madonna (citada também por Andy numa cena do filme), chama a atenção e serve de motivo de gozação por parte de suas coleguinhas ricas, todas no melhor estilo clean dos yuppies norte-americanos. Em A Garota de Rosa-Shocking, a função de fada madrinha aparece dividida entre dois personagens. O primeiro deles é o próprio pai de Andy (Harry Dean Stanton, de Alien, O Fundo do Coração e Paris, Texas), compreensivo, desempregado e abandonado pela esposa pela qual ainda é apaixonado. O outro é a dona da loja onde Andy trabalha (vivida por Annie Potts, de Ghost Busters), uma kitsch-punk tardia que sempre oferece o ombro amigo nos momentos de necessidade. É a partir dos vestidos cor-de-rosa que ganha de cada um deles que Andy criará o modelito para o seu baile de formatura (e poderia haver filme da Gata Borralheira sem um baile?). Se não existem aqui as irmãs invejosas da ascensão social da Cinderela anos oitenta, o conflito se faz presente através da figura de Duckie (boa criação do engraçado Jon Cryer). Quase sempre de óculos escuros redondinhos e trajando roupas bem mais criativas e divertidas que as de Andy, ele é apaixonado por esta garota de rosa-shocking, destilando ciúme ao invés de inveja quando ela parte com seu príncipe encantado. Num filme previsível como este, os melhores momentos ficam, sem dúvida, sob a responsabilidade de Duckie. Last, but not least, surge o tímido e rico príncipe encantado (Andrew McCarthy, de O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas e Uma Questão de Classe), não cavalgando um garboso corcel, mas dirigindo um reluzente BMW. Apesar de seu papel chave na trama, Blane (é este o nome do príncipe) não passa de um personagem insípido, tendo a seu favor apenas a criativa cantada através de um terminal de computador, coisa ainda pouco comum na época do filme. A Garota de Rosa-Shocking parece um título perfeito para o filme. Que outra cor, além de cor-de-rosa, basicamente um branco que queria ser vermelho, poderia tão bem representar a vontade de subir na vida que se esconde por trás desta aparentemente inocente love story? E para os aficcionados da sessão da tarde que insistem em nada ver de subliminar na história, basta um pouco de atenção numa das tramas secundárias, onde a amiga de Andy, depois de anos de comportamento underground, acaba convertendo-se à estética do bom-mocismo para conquistar também seu príncipe não tão encantado. É sintomático: não existe fábula sem moral da história. De um filme onde o enredo não passa de um previsível romance água-com-açúcar e as questões ideológicas são tratadas de maneira suspeita, não há muito mais o que dizer. Assim como Andy, na falta de dinheiro, fazia suas roupas usando peças do passado, também A Garota de Rosa-Shocking, na falta de imaginação, busca o sucesso através da reciclagem de velhos mitos. Infelizmente, sem a criatividade do corte e costura de Andy. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Nemo Nox é editor do blog Por um Punhado de Pixels e do site Burburinho, onde este texto foi originalmente publicado. Nemo Nox |
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