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Sexta-feira, 16/5/2003
Rubem Fonseca e a inocência literária perdida
Julio Daio Borges

"Vila-Matas, o espanhol, fala na síndrome de Bartleby, um sintoma mórbido de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-os renunciar à literatura. Eu não me incomodaria de sofrer dessa doença que acomete tantos dos meus colegas, fazendo-os desistir de escrever."
(Rubem Fonseca, Diário de um fescenino [Companhia das Letras, 2003, pág. 148])

Ele nos ensinou a escrever. Rubem Fonseca, falando de banheiros de McDonald's e denunciando "A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro", em Romance negro e outras histórias (1992), mostrou que era possível. A crítica preferiu a violência descabida de Feliz Ano Novo (1975) e de O cobrador (1979), mas nós preferimos a contemporaneidade do doente que ouvia Tim Maia, e do sujeito que mastigava mulheres e contrafilés, em O buraco na parede (1995). Também da moça que tomava banho, e era observada do outro lado; do protagonista que distinguia a programação, a partir da chiadeira da tevê. Da festa que prosseguia mesmo com um convidado morto na sala, em A Confraria dos Espadas (1998). Do corcundinha que conquistava moças suculentas apenas com poemas, em Secreções, excreções e desatinos (2001). Do outro que se apaixonava por braços, em Pequenas criaturas (2002), feito Quincas Borba. E agora do Rufus, em Diário de um fescenino (2003)... mas, afinal - o que houve com ele?

Rubem Fonseca perdeu a mão. E não é lugar-comum: perdeu a mão mesmo. Rufus, para quem não percebeu, é quase uma corruptela de "Rufo", as iniciais de "Rubem Fonseca" (que coincidentemente abrem o e-mail do escritor). Rufo, ou "Rufus", está novamente cercado por suas mulheres, como também estavam Gustavo Flávio, em Bufo & Spallanzani (1986), Paul Morel, em O caso Morel (1973), e Mandrake, em uma porção de outros contos. Rufus desta vez comete um diário, mas sem metade do charme de seus antecessores. Suas frases são as obviedades tolas de um iniciante; suas situações, de um primarismo estarrecedor. Praticamente não acontece nada de novo: suas peripécias (sexuais etc.) provocam o tédio e a complacência do leitor. O truque das citações igualmente não funciona. (Até elas estão fracas demais.) E a desculpa do livro ser um passatempo para um projeto maior, o Bildungsroman (romance de formação), também não colou. Ficamos presos à pusilanimidade de Rufus, ou "Rufo", em quase 250 páginas (!).

Mas, afinal, o que houve? Piorou ele ou melhoramos nós? [O que algumas doses de Dostoiévski e Kafka não fazem para derribar nossos heróis literários...] Rubem Fonseca esteve, desde sempre, em seu tempo e lugar. Adotou o estilo moderno: da frase curta; da narrativa cinematográfica; da linguagem impudica. Adotou também a temática urbana: violentamente descivilizada, rompendo com o tecido social em explosão enaltecedora do "eu". Como tantos outros em seu século, o XX. E deu lições aos escrevinhadores tupiniquins: com seu fraseado límpido; com um coloquialismo de bom gosto; com a sofisticação mínima que se espera da literatura. Rubem Fonseca, no Brasil, foi um dos maiores contistas dos 1900s, que teve Guimarães Rosa e Machado de Assis. É preciso muito culhão para falar mal de Rufo. Mas todo mundo fala, ninguém liga... Tem sido ele o alvo preferencial dos críticos já há alguns anos (acusam-no de ter se repetido). A diferença é que, depois de certa idade - e, principalmente, depois de certas leituras -, chegamos à conclusão de que "eles" podem ter razão.

O que há de tão fascinante no autor de A grande arte (1979) e o que o aprisiona numa incurável adolescência literária desde que se lançou (com Os prisioneiros, em 1963)? Nós tínhamos vinte e poucos anos quando descobrimos o "Zé Rubem", ou o "Rubem", ou o "Rufo", ou seja-lá-quem-for. Ao contrário daqueles escritores cheios de teias-de-aranha do século XIX (das aulas de literatura), ele falava do nosso tempo, usando palavras que não precisavam de notas de rodapé, e numa sintaxe que não era muito diferente da nossa. Rubem Fonseca, aquele sujeito nascido em 1925, finalmente nos compreendia e nos retratava, à sua maneira desempoeirada e brincalhona. E não havia outro igual. Os demais perdiam-se em crônicas. Em formas vetustas, em assuntos vetustos. Para uma audiência indelevelmente vetusta. Não era mesmo para nós: toda aquela "literatura adulta". (Apenas "má literatura", como viríamos a confirmar depois.) E os clássicos? Bem, os clássicos estavam fora de alcance... O que havia era o Rubem. Só o Rubem. Mas ele não estava em lugar nenhum. Ele não estava nos jornais; ele não estava na televisão. Ele estava na estante. Silencioso. [Continua...]

Acontece que a modernidade passou e chegou a hora de virar a página. A pós-modernidade também não serve mais (aliás, em literatura, nunca serviu para nada). E Rubem Fonseca, o nosso porta-voz, o nosso pai-de-todos, o nosso segundo sol, erode na dança irreversível dos séculos. Basta do infantilismo umbigocêntrico da primeira pessoa do singular. Basta das conquistas descartáveis do macho branco adulto (falido). Basta de subversão pré-fabricada para o típico cidadão médio americano. Basta da escatologia de fazer corar velhas e crianças. Basta das loucas aventuras de uma vida vazia (justificada pelo cinismo). Basta de desagregação, de desconstrução, de dessacralização. Basta de ciência, basta de arte, basta de filosofia (onde elas não existem). Basta de diários, basta de confissões, basta de auto-retratos. Basta de relativizar, de justificar, de ouvir. Basta do vale-tudo. Basta da falta de sentido. Basta de "tudo é permitido". Basta.

Cacos de uma vidraça
Uma coisa agora se justifica. Uma, não: várias. Primeira delas: nunca deu para entender como Rubem Fonseca servia de inspiração para roqueiros e "marinheiros de primeira viagem" (escritores ex nihilo). Agora, dá para entender: porque sua literatura, de superfície, sempre esteve acessível a eles. Porque era simples, e seguro (seguríssimo), citar Rubem Fonseca. Principalmente Agosto (1990), minissérie de TV e best-seller do autor (não que isso justifique...). Segunda coisa: nunca deu para entender a colaboração de Rubem Fonseca em verdadeiras "bombas" literárias, como os grossos volumes de Jô Soares e o embuste ensaístico de Caetano Veloso (Verdade Tropical [1997]). Agora, dá [ainda que a explicação - suponha... - possa ofender o próprio Rufo]. Terceira e última coisa: como um Rubem Fonseca gerou uma linhagem de gosto duvidoso, que parte mais visivelmente de Patrícia Melo, atravessa a "geração 90" e desemboca em Fernanda Young (Os Normais)? (Já foi dada a resposta.)

Making of do Diário
Reza a lenda que o editor, Luiz Schwarz, e sua galinha dos ovos de ouro, Rufo, teriam se encontrado em algum lugar remoto do Rio. O escritor, irreconhecível porque eternamente avesso às câmeras, teria passado incógnito e anotado o fato. Numa comunicação precaríssima, Schwarz apresentaria a Fonseca The Dying Animal (2001), a mais recente novela de Philip Roth. Sem captar a mensagem, o autor de Lúcia McCartney (1967) sugeriria a tradução da obra. O editor refugaria, e proporia então um arranjo mais interessante: por que não lançar uma coleção em que o sexo se introduziria ruidosamente na narrativa, desestruturando planos e desbaratando esquemas (à la Complexo de Portnoy [1969], do mesmo Roth)? Rufo toparia. Dois anos depois, a encomenda estaria pronta.

[Nathan] Zuckerman
"Estou tomando Viagra, Nathan. Está aí o tal 'fogo que arde sem se ver'. Devo toda essa turbulência e felicidade ao Viagra. Sem Viagra nada disso estaria acontecendo. Sem Viagra eu teria uma visão do mundo apropriada à minha idade, e objetivos totalmente diferentes. Sem Viagra eu teria a dignidade de um senhor idoso, livre do desejo, bem-comportado. Eu não estaria fazendo uma coisa sem sentido. Não estaria fazendo uma coisa indigna, imprudente, impensada e potencialmente desastrosa pra todas as partes envolvidas. Sem Viagra eu poderia continuar, nos meus últimos anos de vida, a desenvolver a visão ampla e impessoal de um homem aposentado, honrado, cheio de experiência e saber, que há muitos anos abriu mão dos prazeres sensuais da vida. Eu poderia continuar a tirar conclusões filosóficas profundas e exercer uma influência moral positiva sobre os jovens, em vez de embarcar no perpétuo estado de emergência que é a paixão sexual. Graças ao Viagra, passei a compreender as transformações amorosas de Zeus. Era esse o nome que deviam ter dado ao Viagra: Zeus."
(Philip Roth, A marca humana, Companhia das Letras, 2002, págs. 48-49)

"Tenho amigos comprometidos com determinada mulher que gostariam de ter uma aventura apaixonante com uma segunda, por comodismo sublimam esse impulso comprando uma gravata nova, um carro ou viajando com a patroa no fim de semana. Esses caras envelhecem mal e perdem a vida antes mesmo de morrerem frustrados, refugiados nos seus mecanismos de compensação. Os japoneses têm um provérbio: o sujeito começa a envelhecer quando não quer mais aprender. Meu provérbio é que o sujeito começa a envelhecer quando não quer mais amar, quando perde o entusiasmo pela comunhão sexual, não tem mais coragem de enfrentar a incandescência, os refinamentos eróticos e também as desilusões, aflições e logística exasperante da aventura amorosa. É preciso, como afirma o Don Juan do Molière, manter um olhar atento para os méritos de todas as mulheres, render homenagem a cada uma e pagar a cada uma o tributo a que nos obriga a natureza."
(Rubem Fonseca, Diário de um fescenino [Companhia das Letras, 2003, págs. 129-130])

Disclaimer
"Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião."
(Rubem Fonseca, Diário de um fescenino [Companhia das Letras, 2003, pág. 254])

Para ir além

Julio Daio Borges
São Paulo, 16/5/2003

 

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