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Quarta-feira, 4/7/2001
Você é daqueles que seguem a bula dos filmes?
Daniela Sandler

Me, You, Them é o título com que Eu, Tu, Eles (Brasil, 2000, Andrucha Waddington) passou nos Estados Unidos, no primeiro semestre deste ano. Em Rochester, a cidade onde moro, que tem um cineclube e um cinema de arte, o filme entrou em uma sala apenas. Lá chegam alguns filmes estrangeiros, parte dos quais consegue público suficiente para ficar algumas semanas em cartaz - é o caso de Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love, China, 2000, Wong Kar Wai), que teve salas lotadas nos finais de semana por mais de um mês. Me, You, Them, como boa parte dos filmes, ficou só uma semana em cartaz - faltou público para alongar a temporada. Alguns comentários que ouvi - de gente que viu o filme ou em resenhas - diziam que as imagens eram bonitas, a música era boa, mas o filme era lento, não tinha muita história e suas muitas seqüências longas e silenciosas o tornavam entediante. Ora, acho que a descrição se encaixa como uma luva em mais da metade dos filmes estrangeiros que passam por lá, inclusive o bem-sucedido Amor à Flor da Pele.

Os dois filmes, cada um à sua maneira, são interessantes. Não quero desmerecer um em função do outro. Também não quero dar ao filme brasileiro mais louros do que merece. Para ficar no campo dos filmes-lentos-que-viraram-cult, concedo que, apesar de Eu, Tu, Eles ser um bom filme, O Gosto da Cereja (Ta'm-e-Ghilass, Irã, 1997, Abbas Kiarostami) ainda é melhor. Mas não é questão de fazer ranking toda vez que se vai ao cinema - muito menos de limitar os filmes assistidos a duas categorias apenas (bom ou ruim). A gente gosta de alguns, adora outros, suporta boa parte, odeia um punhado - e não deixa de ir ao cinema só porque a maior parte não será sensacional. O que me irrita na reação do público de Rochester - cidade cinéfila, que conta com um dos mais importantes centros de pesquisa e conservação de filmes do mundo (a George Eastman House) e com excelentes programas universitários de teoria e prática de cinema (Universidade de Rochester, Instituto de Tecnologia de Rochester) - é o bias, a parcialidade preexistente na reação a produtos culturais, a predisposição a gostar ou não gostar determinada por fatores externos ao objeto em questão.

Um amigo meu, que faz doutorado em teoria do cinema, concordou: os filmes asiáticos (iranianos, taiwaneses, chineses, japoneses) têm atualmente um prestígio que extrapola o filme, uma espécie de trunfo. Já saem na frente do páreo. As pessoas vão predispostas a gostar - e também a "tolerar" seqüências longas e silenciosas e roteiros sem narrativa. O público sabe que vai ter de procurar o significado do filme nos detalhes, na junção de um enquadramento com um trecho de trilha sonora, em falas isoladas, ou na caracterização (silenciosa) de personagens. O filme vem com selo de qualidade, chancelado pela aclamação crítica e por prêmios conquistados em festivais internacionais. Júris, críticos e jornalistas não tardam a transformar os sucessos isolados em sinal de um "movimento" coletivo - "o novo cinema japonês", "os iranianos" -, como a querer dar significação histórica maior que as conquistas artísticas individuais de cada cineasta. Não quero com isso sugerir que não se deva ter senso de conjunto ou que se ignore o contexto dos filmes. O que chama a atenção é quando o esforço de contextualização vira mito heróico, exagerado - e, como mito, passa a arrebanhar a fé cega de seguidores...

Mais que isso. Além do selo de qualidade da nacionalidade, cada filme vem acompanhado de bula. Críticas jornalísticas e comentários informais embalam filmes como O Gosto da Cereja, que já chegam com terreno arado. A propaganda corre nos "intelligentses" corredores universitários, nos bares "descolados", nos restaurantes "muderrnos", nas exposições "hypadas". O que diz essa propaganda? Diz se é "OK" gostar ou não do filme. Diz que "mensagem" se deve ler, como se deve reagir, a hora de chorar, a hora de rir. Mais que isso. Diz que, compartilhando opinião e experiência - ou seja, vendo o filme e reagindo comme il fault -, garante-se o acesso aos círculos iluminados. É uma espécie de "valor monetário" cultural. Nem preciso dizer que esse fenômeno não ocorre só em Rochester, ainda que a reação brasileira a Eu, Tu, Eles tenha sido diferente (o que também não é nenhuma surpresa). Com variações locais como essa, o "valor monetário cultural" existe cá e lá; em São Paulo e em Nova York; ou, como diria nosso colunista Paulo Salles, do Ritz ao Spot. Como valor, tem pouco de cultura e muito de produto. Por "cultura", neste caso, entendo a reação criativa, individual e livre aos filmes - ainda que em diálogo com a crítica existente e com a reação de outras pessoas. Com "produto", quero indicar o consumo irrefletido dos filmes, ainda que acompanhado por comentários pseudo-profundos.

Vocês sabem do que estou falando. Por exemplo, de gente que vai ao Espaço Unibanco porque é bacana ser visto lá; porque vai reconhecer e ser reconhecido, sinalizando o pertencimento a determinados grupos; porque dá prestígio. Eu também vou ao Espaço Unibanco. Assim como eu, sei que muita gente vai simplesmente por se interessar pelos filmes que passam lá. Mas, se eu pudesse escolher, só ia nas sessões vazias - terça à noite, sexta às duas da tarde -, para não ter de ficar horas nas filas e depois sentar no canto extremo da última fileira. Quando vou nas horas de pico, tenho a estranha impressão de que a maioria daquelas pessoas que ficam um tempão na fila está é curtindo a situação - mais tempo de "exposição" e mais chance de ver e ser visto (mais ou menos como as pessoas que parecem gostar do tempo de espera em restaurantes badalados - como, aliás, o Spot).

Nada disso tem a ver com "gostar" ou "desgostar" do filme em questão. Não é o fato de que, em Rochester, teve gente que não gostou do filme ou dormiu durante Eu, Tu, Eles que me chateou. O que me incomodou é que essa gente é a MESMA que babou por Amor à Flor da Pele, e as razões dadas para não gostar de Eu, Tu, Eles são exatamente aplicáveis ao filme chinês. Se alguém me dissesse que não gostou porque, sei lá, achou os personagens inverossímeis, o roteiro pouco desenvolvido, o ritmo irregular ou a paisagem muito seca - vá lá, não concordo, mas aceito. Mas usar dois pesos, duas medidas por causa do "valor monetário cultural" - ah, não!

Ninguém precisa gostar nem de Amor à Flor da Pele nem de Eu, Tu, Eles. Eu gosto desses filmes, amei O Cheiro da Papaya Verde, Tio Vanya em Nova York e Onde Fica a Casa do Meu Amigo, mas não quero nem espero que todos façam o mesmo. Que o critério, no entanto, seja pessoal (seja qual for), e não a ditadura coletiva do gosto - que, para mim, tem o nome de religião.

Para ir além

Eu, Tu, Eles

Amor à Flor da Pele

O Gosto da Cereja

Daniela Sandler
São Paulo, 4/7/2001

 

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