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Segunda-feira, 9/6/2003
Hilda Hilst na pintura de Egas Francisco
Jardel Dias Cavalcanti

"Para um pintor o dia começa com o sol iluminando a janela e a nudez de uma tela exposta à volúpia, pronta para ser possuída, desafiando do alto do cavalete a sensibilidade e os nervos do artista". (Egas Francisco)

Egas Francisco é um dos mais importantes pintores vivos de Campinas. No ano passado tivemos um contato mais amplo com seu trabalho através da uma exposição de suas obras promovida pelo Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC). A exposição, com o título "Egas Francisco: a solidão e o grito", foi altamente satisfatória, pois através dela acompanhamos o valioso conjunto dos trabalhos de Egas, numa perspectiva que partia da segunda metade dos anos 50 até os trabalhos mais recentes.

Dentro do vasto conjunto das obras de Egas, escolhi analisar a obra "Hilda Hilst e os cães" para tentar penetrar neste rico universo pictural que o artista nos oferece.

Neste "retrato" da escritora Hilda Hilst, criação de 2000, cada pequena matéria pictórica está inflada de expressão poética. Desenhista de massas e movimentos e não de linhas, o pintor compôs uma obra onde grandes nacos de tinta batem-se, chocam-se uns contra os outros numa inquietação barulhenta, num drama pictural que desenha a figura de Hilda Hilst e a constitui como bloco tensionado. Aqui cada cor foi pensada não apenas em suas relações de valor, mas de peso, densidade e movimento. É então que a obra adquire a sua preciosa qualidade de entidade viva, trazendo em si os sinais indestrutíveis de uma vida esfuziante.

Entender este "retrato" de Hilda Hilst é entender as vibrações de uma sensibilidade densa. O principal propósito de Egas foi estabelecer o Ser da retratada através de um conhecimento essencial, só possível de ser revelado pela arte. Afinal, não é o artista aquele que mais imediatamente capta o Ser, detendo-o e estabilizando-o numa coisa presente que é a obra de arte? Nesse sentido, podemos pensar na idéia de Heidegger de que a arte é um ato de violência que revela o Ser.

A obra Hilda Hilst e os Cães não é o que se poderia chamar de uma fotografia da escritora, mas é, antes, uma visão, uma espécie de posse metafísica de uma essência absoluta. Através de gestos expressivos que traduzem visões essenciais para a linguagem dinâmica da cor, o artista deixa de lado as ambições restritas ao objeto da arte mimética e, embalado pelo poder expressivo genuíno, ingressa numa dimensão mais elevada do ser. Afinal, não é através desse ato ontológico radical que a subjetividade libera-se das influências corrompidas do pensamento racional, dando acesso ao cerne da criatividade originária?

O artista perscruta na retratada sentidos que estão além de sua órbita mais imediata. Não o preocupa uma precisão icônica ou mimética. Aqueles traços pintados buscam adquirir um significado mais amplo, tornando-se, dessa forma, "vibrações" que registram a presença de um estado mais profundo e transpessoal do Ser. O que interessa ao trabalho de Egas é seguir com fidelidade instintiva uma certeza interna, associada a uma necessidade de dar expressão imediata a essa certeza. Por isso, quando estamos diante do quadro temos a sensação de uma espécie de transmissão direta de energia que parte da retratada, atravessa o pintor e deságua na tela.

Em Hilda Hilst e os Cães Egas pretende alcançar uma espécie de unidade entre a estrutura do objeto e a estrutura do sujeito, isto é, estabelecer entre o interior e o exterior aquela continuidade e circularidade de movimento que, no pensamento de Bergson, constituía a "evolução criadora". Tal unidade só pode ser alcançada pela arte, na medida em que a arte é justamente a realidade que se cria a partir do encontro do homem com o mundo. Toda a movimentação das pinceladas de Egas tenta encontrar uma correspondência na invenção de uma linguagem pictórica que concretize seu conceito de necessidade interior. E se toda arte tem um conteúdo interior, a forma é a manifestação exterior deste conteúdo.

O que Egas almeja é constituir não uma figura que o nosso olhar, cego em seu empirismo, considera real, mas a indagação de sua essência característica, o seu aspecto mais íntimo. O artista empreende um mergulho nas profundezas da psique da retratada, em busca da raiz deste ser que, em sua crueza, ingressa na pintura. Como se cada pincelada corroesse as camadas formadas pela couraça (que constitui o rosto social) a fim de chegar ao rosto original que se rebela contra qualquer ordem, revelando os impulsos de ternura ou de cólera, de alegria ou de tormento. Como marca do trabalho impulsivo do artista, Hilda Hilst e os Cães ainda guarda o ruído do pincel ao ferir a tela, o murmúrio de tubos de tinta espremidos até o fim. Nesta pintura as palavras afável e passivo não existem. Pode-se falar, isto sim, em contração e concentração, em esforço que comprime fibras e faz fibras vibrarem. Cada único golpe condensa todo o vigor de um gesto. Uma pincelada como irrupção única e deliberada para transmitir a intensidade expressiva da retratada.

Entre o pintor e a retratada houve uma relação de simpatia no sentido etmológico do termo: padecem juntos. Para ele, a retratada não deve ser olhada do exterior, mas, ao contrário, é alguém em que se deve penetrar, dentro do qual se deve viver. Só assim a figura é subjugada pelo arrebatamento do artista, sendo extraída de sua imobilidade e restituída ao estado de incandescência.

Em Hilda Hilst e os Cães cortes abruptos e o ritmo espasmódico das pinceladas revelam, nesse habitat das forças indefinidas e opressivas que se tornou o retrato, o trauma metafísico que consome a retratada.

Aqui nesta obra a cor exprime algo por si só, não podendo descolar seu valor metafórico. A cor tem o valor de uma violenta metáfora, adquirindo uma virtude de persuasão autônoma, ainda que não distinta da inspiração geral da obra. Além da pincelada, em sua textura pictural e gestual, a cor se estabelece como índice fundamental da expressividade da obra.

A agressividade da tela parece brotar das grandes áreas de cores vivas que, ao que parece, são aplicadas amplamente por grossos pincéis. Como se manchas de cor e gestos de pincel pretendessem comunicar diretamente ao espectador o significado da obra. As cores pretendem, ao se coagularem, exprimir uma parte indefinida do sentimento que a palavra, muito positiva, não pode expressar. A cor traz significados sem referência aos códigos intelectuais e verbais. Por isso, na arte de Egas uma determinação se estabelece por meio do qual a cor é indissociavelmente relacionada à emoção.

Como dizia o pintor Derain, "as cores são cartuchos de dinamite". E aqui elas fazem explodir na tela a essência secreta da realidade da alma, em sua pura e misteriosa força libertada. A figura se nos apresenta de pronto como um anjo rebelde que conserva, sob o signo do demoníaco, seu caráter sobrenatural. A obra se constitui através de elementos ativos que determinam o dinamismo trágico da imagem. Um frêmito nervoso produz uma espécie de estremecimento secreto no rosto. Cada naco de tinta forma e avulta como um fantasma, prefigurando o destino da retratada (que nós podemos intuir).

* * *

Na retratada, o ser da poeta Hilda revela-se. A despeito de qualquer coisa, a poesia é seu destino. Existe um parentesco entre a luz que brilha no seu rosto e a alma que sonha. Essa chama sonhadora que dorme dentro da tela anuncia o mundo dos poetas. Como brilho que vive só, naturalmente só, que quer ficar só, um pequeno incêndio se alimenta de pinceladas enérgicas, vitais, que tremem em sua existência. Um brilho delicado, para além de qualquer brilho trivial, revela um modelo de vida delicada. Está marcada também a apreensão em relação à realidade exterior na parede protetora que os cães formam. Massas e cores se traduzem numa percepção da retratada, numa transcrição poderosa da sua vida interior. Egas pinta Hilda Hilst e os Cães como se a figura devesse se desintegrar, dissolver-se num caos pictórico pleno de animação, como fragmentos esvoaçantes de cor que são infinitos átomos luminosos e coloridos extremamente móveis.

Para Egas os retratos nunca são cópias fiéis das pessoas, mas apresentam total fidelidade realista à experiência da intuição de uma alma. Ele faz uso da mesma operação que produz uma poesia de forma extrema, que abandona a convenção da sintaxe, distorcendo-a, fazendo substantivos transformarem-se em verbos ou verbos em substantivos. Juntamente com efeitos de fragmentação das linhas que também podem ser vistos como um registro diretamente "indicativo" do seu significado imediato. Ou como marcações de uma partitura que, por vezes, expressam música, mas outras vezes aspiram à condição de um grito. Na obra Hilda Hilst e os Cães a deformação não é puramente ótica: é determinada por fatores subjetivos. Ao expressar o "interior" da figura em traçados espessos de tinta, busca obrigar a totalidade a se identificar com um fragmento da realidade. Esse é o projeto de Egas, tentar, por meio da pintura, retratar aqueles sentimentos que não podem ser traduzidos em palavras.

Salta aos olhos na pintura de Egas uma grande tensão que brota da oposição nervosa no uso das cores e na forma da aplicação das matérias pictóricas sobre a tela. Esta oposição, que pode ser marcada, por exemplo, pela cor branca em atrito com o vermelho ou o negro, define dois universos que existem e se opõem em eterna tensão dentro do próprio homem: o espiritual e o carnal. Na maioria de suas pinturas isso é visível, quando surgem conflitos não só entre as regiões inferiores e superiores na tela, mas também no uso que o pintor faz de matérias pictóricas mais pesadas na região inferior e matérias mais leves na região superior da tela (ou vice-versa).

A relação que marca o tensionamento entre espírito (no caso, a exigência do mergulho da escritora no universo das idéias e da criação literária) e mundo (o desencontro existente entre o tempo interior do artista e o tempo do universo social) define-se na gradação das cores e massas que o artista instala na tela. Os cães, essas massas pictóricas densas que servem como parede protetora para nos afastar de Hilda, permitem à escritora um comportamento ensimesmado, um mergulho no desconhecido da experiência artística. Criam, por bem dizer, o necessário afastamento do mundo. O ombro da figura e parte de suas costas estão fortemente tensionadas numa mescla de vermelhos e azuis que se misturam escurecendo parte da figura. Estamos ainda diante de uma proteção que favorece a aparição do rosto da escritora, que nos olha, mas não nos vê, pois está perdida em pensamentos que desconhecemos. A mão ao queixo indica a situação da mente em trabalho de criação e reflexão (lembra "O Pensador", de Rodin). A partir do rosto de Hilda Hilst, a massa pictórica vai se tornando rala até encontrar a forma vaga que surge sobre sua cabeça, fazendo a ligação da escritora com os mundos etéreos.

Diferente da pintura de um artista como El Greco, que faz as formas ascenderem de maneira suave, do natural ao sobrenatural, Egas produz uma tensão sem equivalente entre estes dois mundos antinômicos. Esta forma de apresentar essa crise entre matéria e espírito está presente em várias telas do artista.


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 9/6/2003

 

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