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Segunda-feira, 2/6/2003
Documentado errado
Eduardo Carvalho

Começa assim, na fila do cinema: "Quero dois ingressos para Bowling for Columbine". Vocês não ouviram: digo "Columbine" mesmo, pronunciada em português, com "i" tônico, e não "columbaine", em inglês, como se convencionou chamar por aqui. Esse é o espírito do filme - e do espectador. Só o que resta é torcer para, na sala, o sujeito não sentar ao meu lado.

Mas não adianta. Ele senta. E, durante o filme inteiro, conversa com o amigo, espantado com a ousadia e a perspicácia de Micheal Moore. O que me espanta em Michael Moore, porém, desde o começo, é outra coisa: é o seu completo descaso em se apresentar razoavelmente arrumado. Ele já é gordo e feio. Poderia se vestir melhor. Ou não: porque assim está, convenhamos, muito engraçado. E o conjunto - com os óculos, a barba e o boné - é imprescindível: tudo compõe um estilo. Não fossem as aparências, Michael Moore e o seu filme não agradariam nem o mais ferrenho anti-americano. Sua estratégia publicitária é, na essência, idêntica à da Coca-Cola: Bowling for Columbine é uma estudada seqüência de imagens com a intenção de vender um produto. Só que com uma pequena diferença: Moore não identifica claramente o produto que anuncia. Acaba revelando sua própria desonestidade.

Bowling for Columbine - ou, para quem preferir, Tiros em Columbine - pretende descobrir a origem da fascinação americana por armas de fogo. E encontra diversos motivos: a violenta história americana; a paranóia da classe média; a carnificina dos filmes e jogos; o interesse de grandes empresas; etc. A conclusão de Moore é nebulosa, ou confusa - intencionalmente, talvez. Mas suas acusações são fortes e diretas. Num desenho animado, por exemplo, que Moore encaixa no filme, e atravessa rapidamente a história americana, uma mesma classe de homens brancos é acusada de "roubar homens na África" e, depois, fundar a Ku Klux Klan. Esses mesmos brancos são os que, para Moore, estão hoje trancados em casa e armados até os dentes, para se protegerem de negros e hispânicos. Ora, pois. Ou isso é uma absurda simplificação da história ou uma mentira grotesca. Ninguém razoavelmente educado cai num golpe tão bobo. Moore deveria trabalhar melhor as suas enganações.

O que, na verdade, ele até fez, em outras situações, descritas minuciosamente na Spin Sanity, na Forbes e na The New Republic. A começar pelo título do filme, que sugere que os estudantes de Columbine, antes de atacarem a escola, participaram de uma aula de boliche. Só que eles não jogaram: policiais confirmam que, naquela manhã, eles cabularam a aula. Quando Moore apresenta uma série de dados sobre a política externa norte-americana, diz que, de 2000 para 2001, os Estados Unidos doaram ao Taliban 245 milhões de dólares: mas esse dinheiro não foi diretamente para a organização, senão para programas apoiados pela ONU e por ONG´s que tentavam acabar com a fome no Afeganistão. Numa passagem, no começo do filme, Moore entra num banco, abre uma conta, e sai de lá carregando uma arma: só que a arma que o banco oferece não é entregue naquele lugar. Em outra ocasião, Moore visita uma fábrica que supostamente produz armas de destruição em massa, e insinua uma relação entre a produção de armamentos na cidade e o assassinato cometido por adolescentes. A fábrica visitada por Moore, porém, não produz mísseis nem coisa parecida, mas sim bases para lançamento de satélites de televisão. E por aí vai. Moore procura uma resposta que já sabe qual é - e a divulga para quem sabe o que vai ouvir. Não é preciso, nesse caso, nenhuma preocupação estatística.

Moore se acha muito inteligente. Sugere a um caipira alucinado que os Estados Unidos devessem se proteger de outros países adotando a estratégia de Ghandi, e resistir pacificamente a eventuais ataques estrangeiros ou terroristas. O público se diverte com a ignorância do caipira em relação a Ghandi. Essa é mais uma sutil jogada de Moore: dialogar com seus entrevistados no nível de compreensão de seu espectador. Moore, assim, reafirma a sua inteligência, elogiando implicitamente a cultura do seu público. Existe, entre Moore e o seus fãs, uma bajulação disfarçada e recíproca. Sai todo mundo da sala de cinema se achando muito mais inteligente - simplesmente porque talvez não seja tão idiota quanto o personagem ridicularizado por Michael Moore. Sinceramente - o que isso significa? Provavelmente a mesma coisa que o documentário inteiro: nada.

Não é que Michael Moore tenha escolhido a profissão errada. Na verdade, ele nem poderia ser outra coisa: seu talento publicitário é evidente. Cineasta é, para ele, a profissão ideal. Mas Moore errou na categoria: em vez de se dedicar inutilmente ao documentário, deveria preferir a comédia. E se eleger como principal ator. Moore tem ritmo e criatividade. Desconfio, porém, do motivo de sua insistência: dificilmente ele faria tanto dinheiro se parasse de divulgar sua agenda política.

Do outro lado do mundo

Nelson Freire, no piano

Esta última geração de filmes brasileiros - O Invasor, Cidade de Deus, Carandiru, etc. -, que se aproveitou de avançados recursos técnicos e de incentivos estatais à cultura, conseguiu quase somente "sensibilizar" o espectador recorrendo à pobreza caricaturada e à violência exagerada. É essa uma fórmula garantida de sucesso internacional, e, portanto, nacional também. Porque o espectador brasileiro, quando ignorante assumido, engole enlatados, ou, quando metido a intelectual, procura "alternativos". E só o que se encontra são filminhos repetidos, com uma ou outra fórmula, uma para cada estilo. Extinguindo-se, assim, o prazer da variedade. E a beleza, enfim, de um filme bom. Isso cansa.

É estranho que o espectador brasileiro - saturado, no cotidiano, de pobreza e de violência - agüente mais uma vez o espetáculo da grosseria quando sai de casa para se divertir. A tensão da realidade basta. Não é consumindo feiúras que se aprende a contemplar a beleza. Não se esculpe um espírito entupindo-o com lixo. O cinema brasileiro até pode, e deve, de vez em quando, retratar essa "outra realidade" - que nem é, para os bem informados, uma novidade surpreendente. Mas não pode ficar só nisso. Existe, afinal, digamos assim, outra realidade, e o erro sempre é, no Brasil, o de negar a diversidade - enquanto afirma descobri-la.

Por isso, e por muito mais, que Nelson Freire, o documentário de João Moreira Salles, é - para o brasileiro educado - imperdível. Porque, o que é raro, não nos trata como "burgueses alienados", e não propõe uma lição infantil. É simplesmente entretenimento, de alta categoria, que nos desliga de preocupações cotidianas transpondo-nos, suavemente, para uma atmosfera civilizada. Pode-se chamar de arte. Eu não gosto: é diversão mesmo, ou, se quiser, situa-se, equilibradamente, naquela fina fronteira, onde se encontram o prazer estético e o refinamento intelectual. Nelson Freire não é exclusividade de barbudos ou boiolas, que, saindo não sei de onde, entopem as salas de cinema de São Paulo. Sem ofensas. Mas o documentário de João Moreira Salles pode ser perfeitamente compreendido e apreciado por pessoas normais. Não se sinta excluído.

Eu, pelo menos, não me senti. Porque o próprio Nelson Freire é normal. Normal assim: ele é, incontestavelmente, um talento extraordinário, no piano, mas fuma e bebe, tímido, e assiste a musicais clássicos, na televisão, imune ao deslumbramento que afeta muitos de seus companheiros de profissão. É desarticulado no discurso e desajeitado nos modos, mas, e sempre, silenciosamente simpático. Sua calculada velocidade, no entanto, quando assume o teclado, é impressionante - e contrasta com seu temperamento pacato. Não me lembro quem, certa vez, comentou que nunca havia conversado de forma tão agradável como quando rodeado por músicos. Talvez por isto: porque alguns instrumentistas nem precisam falar. Nelson Freire corta suas frases no meio, de vez em quando. E, no documentário, ninguém sente falta: sua música, no fundo, intervêm - e é o suficiente.

A figura do pianista erudito ainda assusta, no Brasil. Enquanto traficantes são, muitas vezes - e, que eu me lembre, pelo próprio João Moreira Salles -, considerados mais interessantes, como pessoas ou personagens. Pois não são. E não são interessantes porque lhes falta humanidade. Não há como se identificar com personagens vazios. Nelson Freire humaniza Nelson Freire, e, conseqüentemente, a figura do pianista clássico, mesmo sendo ele, em certo sentido, uma exceção. Hector Babenco, em Carandiru, aproveitou os recursos dos contribuintes para mostrar que o Estado - que bancou, em parte, o seu filme -, e, portanto, a Polícia, não vale nada; e que bandidos, assassinos e traficantes também têm coração. É o que o povo, última e curiosamente, gosta de ouvir. Nelson Freire, entretanto, reconhecido no mundo inteiro, continuaria esquecido, aqui, não fosse a iniciativa de João Moreira Salles. É justamente o erudito que, nessa onda toda, quase desapareceu, entre tanto preconceito: e é afastando esse preconceito que Nelson Freire acerta o seu tom.

É verdade que, como documentário, Nelson Freire é pouco informativo, em relação à carreira do pianista, o que, para alguns espectadores, pode ser desagradável, ou decepcionante. Sua estrutura é bagunçada, os depoimentos dispersos, as cenas aleatórias. Pois não é esse necessariamente um problema técnico, senão mesmo um de catalogação. Nelson Freire é considerado um documentário por falta de opção: não pode ser uma aventura, um faroeste, uma comédia-romântica. A atenção com a beleza superou a preocupação documental. Restaram falhas. Mas, enfim, sobrou aquilo que, na confusão urbana que nos rodeia, mais nos falta: o aliviante impacto do que é bonito.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 2/6/2003

 

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