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Quinta-feira, 12/6/2003
Cinema brasileiro agora é notícia. Por quê?
Lucas Rodrigues Pires

Sim, esta é a nova onda do jornalismo brasileiro. Descobriram que existe cinema feito no Brasil. Nas últimas semanas circularam diversas matérias na imprensa verde e amarela falando sobre uma certa "reaparição", ou redescoberta, do cinema nacional. Tais reportagens soam aos meus olhos como se dissessem "Agora sim podemos dizer que existe um cinema nacional!!".

Foi a CartaCapital com mil confetes para Babenco e seu Carandiru, que já passou dos 4 milhões de espectadores; recentemente a EXAME surgiu com a fórmula para transformar o cinema nacional num negócio de verdade; a Monet, revista da TV a cabo NET que circula em bancas e entre assinantes, estampa na capa "Os Eleitos", a saber: Hector "Carandiru" Babenco, Fernando "Cidade de Deus" Meirelles e Cacá "Deus É Brasileiro" Diegues... No último domingo foi a vez do Estadão festejar nosso cinema com uma reportagem mostrando como o cinema nacional inverteu a ordem e hoje é ele quem fornece à televisão atores, diretores e roteiristas. Nunca se viu tanta repercussão de um cinema até outro dia ignorado pela mídia. Por que isso agora?

A pergunta invoca várias alternativas de resposta, mas uma delas se sobressai: há uma tentativa consciente e inconsciente de se mercantilizar o cinema brasileiro, passo importante para a efetivação de uma indústria cinematográfica. Com a repercussão na mídia desses filmes de sucesso, tentam transformá-los na fórmula salvadora do cinema brasileiro (leia-se: na fórmula possível de se criar a tal indústria sonhada por todos - coisa que Adhemar Gonzaga já idealizava na década de 20 e 30 -, desde produtores e cineastas até dirigentes da Ancine e outros órgãos ligados a cinema). O sucesso de Cidade de Deus e Carandiru já até levantou a idéia de que filme brasileiro, para se fazer público, tem de abordar a realidade (o que quer que isso queira dizer, porque existem diversas realidades no Brasil, desde a miséria e a violência de Cidade de Deus e Carandiru até as paisagens idílicas e gente bonita de Mulheres Apaixonadas). Cacá Diegues disse isso na matéria da Monet. "...começamos a fazer filmes sobre assuntos que o público quer ver. O cinema nacional sempre se saiu melhor quando abordou a realidade brasileira e não quando tentava imitar nada". Será verdade?

Formatar o cinema ao gosto do público é algo extremamente duvidoso, se compararmos com o coeficiente qualidade e audiência na televisão, negligente com a função artística do cinema. Os lixos televisivos aos quais assistimos hoje estão voltados para captar anunciantes e satisfazer a fome de vendas destes via altos índices de audiência. O cinema, como é feito hoje, atua com mais liberdade porque o filme já está pago e não há a contrapartida financeira. Por um lado, isso gera certo sentimento de "irresponsabilidade de público" (o filme, já estando pago, não sofre pressão para ser exibido e recuperar o investimento), mas, por outro, libera o agente para fazer o que achar melhor em termos de criação, sem ceder em pontos importantes no quesito mercadológico.

Anatol Rosenfeld, em Cinema: Arte & Indústria, destaca que a importância da liberdade artística costuma ser, até certo ponto, exagerada e questiona se a liberdade artística absoluta não seria uma ficção, uma utopia no cinema. Conclui que não há uma história do cinema sem a indústria ("uma história do cinema deve tomar em consideração que o seu objeto é, essencialmente, uma Indústria do Entretenimento") e não há produção cinematográfica possível sem dois de seus alicerces - a organização industrial e o investimento de considerável capital.

A Ancine chegou para apimentar ainda mais o cenário e dar rumos à atividade audiovisual. Num primeiro instante, ela surge com desejos intensos de criar a tão almejada indústria cinematográfica, com idéia e intenção de fomentar filmes voltados às massas. Gustavo Dahl, presidente da Ancine, deixa claro nas páginas de EXAME o foco da agência. "Se queremos criar uma indústria do cinema [e como querem isso], temos de dar mais atenção ao cinema voltado para as grandes massas".

Há unanimidade de como se atingir tal objetivo. EXAME aponta alguns pontos necessários à auto-suficiência do setor: produção em alta escala, maior número de salas e popularização dessas mesmas salas e tratar o setor como indústria e negócio, o que envolveria correr riscos financeiros e desvinculá-lo do Estado. Percebam que os argumentos e soluções são os mesmos colocados por Rosenfeld na década de 50 e que são reciclados a cada geração, passando por Jean-Claude Bernardet, em 1978, com Cinema Brasileiro: Propostas para uma História, em que discutia os problemas enfrentados pelo cinema brasileiro em seu próprio país, até chegar aos pensadores do cinema de hoje, basicamente jornalistas da área e homens ligados ao setor. Como os problemas e anseios se mantêm os mesmos, Rosenfeld e Bernardet continuam autores atuais, o que os torna pertinente para uma releitura.

Já para Babenco, na mesma Monet, o problema é que faltava produto porque o público sempre existiu. Talvez ele quisesse dizer que faltava produto como Carandiru, produto de preço próximo a R$ 12 milhões, com atores conhecidos do público, com mais de R$ 3 milhões investidos em marketing e uma distribuição que chegou a 300 salas do país. Sim, Babenco, falta produto como esse seu no cinema brasileiro, mas não é todo mundo que pode dispor do que o senhor dispôs para fazer um filme.

É, no mínimo, estranho um cineasta autoral como Babenco tratar o filme como produto. Nessa nomeação está embutida a filosofia do mercado que ele, como a maioria da mídia e dos próprios realizadores, parece ter interiorizado. Sim, porque ultimamente soa piegas e ultrapassado (diriam na política neobobos, ou dinossauros) defender o cinema também como arte e não apenas como produto. O que essas reportagens citadas acima fazem é justamente destacar, tomando o sucesso isolado de dois filmes, que o cinema brasileiro tem jeito, pode ser uma indústria, pode ser lucrativo como o cinema americano é. Oras, não percebem que com isso tampam o sol com a peneira, pois descontextualizam todo um cenário cinematográfico, pinçando o que vai bem e ignorando todo o resto.

O cinema brasileiro sempre foi tratado como exceção dentro de seu próprio país. Os menos de 10% de ocupação do mercado atingidos nos últimos anos não condizem com o tamanho da dominação estrangeira sobre o mercado exibidor nacional. A mídia festejar dois ou três filmes é saudável quando abre a discussão e não a encerra. O sistema nunca deve ser fechado numa solução fácil. Mas, como fazem, ou seja, partir disso para afirmar que o cinema brasileiro está "muito bem, obrigado" ou querer com esses exemplos ditar o caminho para a implantação de uma indústria, é falácia liberal. O discurso da maior parte da imprensa e de diretores/produtores está inserido nesse contexto de mercantilização do cinema, de homogeneização de um cinema que nos últimos anos se destacou pela pluralidade de linguagem, estéticas, temáticas e estilos.

O perigo reside justamente na total abstração desse jogo liberal que poderá levar cineastas originais e autorais a se adaptar ao esquema e deixar de lado suas convicções ou simplesmente não mais filmar por não se enquadrar ao jogo. Não esqueçamos que a utopia faz parte da arte e, conseqüentemente, do cinema. E olha que nem falamos da presença atuante do Estado no setor (via leis de incentivo), coisa que a indústria pretende abolir (já viram algum país ter um cinema sustentável sem a utilização de verbas públicas? Só não me respondam Estados Unidos e Índia, por favor), e na ocupação de 90% do nosso mercado pelo cinema americano.

Parece que a verdadeira utopia é exatamente viabilizar uma indústria de cinema no Brasil auto-suficiente e desvinculada do Estado...

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 12/6/2003

 

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