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Quarta-feira, 18/6/2003
Woyzeck: um brasileiro
Rennata Airoldi

Mil "Marias" morrem a cada minuto. E, ainda assim, ao soar a sirene da fábrica, tudo é esquecido, pois a vida tem que continuar. O tempo segue, os segundos, os minutos, as horas, os dias. A roda que movimenta a história não pára. Depois de um suspiro de adeus, uma breve tristeza quase que fingida. É assim: é isso que vale a vida de cada um de nós: um suspiro de piedade. Pobre Maria! Pobre de nós, sanguinários abutres diante da morte alheia. Talvez uma ou outra lágrima escorra pelo rosto cansado. Hoje em dia, em muitos momentos, o mundo se assemelha à um grande abatedouro. A vida está sempre por um fio.

Quando um homem não tem cultura, não tem um trabalho digno, não tem bens materiais, não lhe resta nada. Ou melhor, quase nada. Salvam-se os sentimentos, a dignidade, um sopro de esperança, um objetivo: ao menos alimentar um amor. Um paixão que move o cotidiano, um outro ser que torna a vida menos cinza, que traz um sentido. Todos vivem isso o tempo todo. E se esse amor o traísse? Será que, ainda assim, a fé no amanhã seria inabalável? A mente humana é capaz de cometer as maiores loucuras e sofrer os maiores delírios quando carregada de sentimentos e cega por pensamentos obscuros.

Woyzeck é um homem simples, como muitos que vemos todos os dias pelas cidades. Um homem que trabalha numa olaria e faz alguns bicos para ganhar mais dinheiro, para alimentar a boca de seu filho, para presentear sua Maria. Tudo em nome de seu amor. E esse nobre sentimento determina todas as suas atitudes, até mesmo ao tornar-se uma cobaia humana: ser fruto de experiências científicas. Um filho, uma mulher. Um homem honrado, um bom sujeito, como milhares de trabalhadores de nosso país. Este é o ponto de partida dessa história.

Incrível a capacidade do artista de se adaptar e de ver tudo que está contido numa obra. Georg Büchner escreveu Woyzeck em 1837 deixando a obra inacabada. Mais de um século depois, a obra adaptada por Fernando Bonassi, Cibeli Forjaz e Matheus Nachtergaele, ainda nos diz tanto! A partir do homem, do átomo, da fala simples, da essência, do amor. Transportado para um Brasil pobre e faminto, a peça parece traduzir um pouco de cada um dos espectadores. Em cena, todos trabalham quase o tempo todo. A roda gira e a mesmice dos movimentos repetidos chega a causar tédio. Que "vidinha" mais miserável! E esses trabalhadores, ainda assim, são capazes de cantar, dançar, sorrir e dizer: "Acordei tão feliz hoje"! Diante disso, só isso. Tão pouco... Apenas o suficiente.

Por outro lado, a adaptação deixa um pouco a demência e a ignorância do personagem principal, floreando e transformando o que é intragável em lúdico e lírico. É uma escolha. Na obra de Büchner, Woyzeck é mais animal e bruto. O mundo à sua volta é mais frio. Aqui, tudo é mais bonito e mais organizado. Talvez, falte um pouco de abismo nesse chão tão firme e organizado, sugerido pela direção e pelo texto adaptado.

O espectador entra num espaço, compõe com ele, vive intensamente o movimento das cenas. Isso, sem dúvida, faz com que todos se sintam um pouco culpados pelas ações cênicas. É quase impossível fazer algum tipo de crítica, pois o espetáculo é tão redondo, tão intenso e tão emocionante ao mesmo tempo que só assistindo para sentir o que é fazer parte de uma peça teatral. Atores o tempo todo cara a cara com os espectadores! O galpão onde se passa a peça é a olaria. E tudo em volta faz parte do ambiente, é parte desse grande cenário. Do chão ao teto, nos mínimos detalhes. Ao entrar e se sentar, o espectador é transportado para esse universo; só se desprendendo dele quando chegam os aplausos finais.

Tudo se completa dentro da proposta: figurino, cenário, trilha. O que é muito interessante também é que há um elenco de extrema diversidade, que consegue, no conjunto, traduzir a sensação de "povo". De um grupo que carrega muitas diferenças não só físicas, mas na maneira de atuar, de falar, de agir. E tudo misturado vira uma grande massa. A impressão que temos, conforme os múltiplos cenários se desvendam, é a de estarmos numa cidade real, ou dentro de um filme. A dinâmica desse movimento cênico é incrível o que faz com que a peça prenda a atenção do espectador o tempo todo. A direção de Cibele Forjaz, sutil e precisa, é responsável pela unidade dentro de tantos movimentos descompassados. Na verdade, até o caos das ações simultâneas têm uma ordem, como se tudo fosse parte de um mecanismo. Como se fossem as peças de uma grande máquina. Resultando sempre num pulso comum.

Entretanto, o que realmente impressiona é a verdade cênica. Os atores estão o tempo todo em cena e ali, vivem aquela história com uma convicção absoluta. Não há dúvida que todos compraram uma idéia e crêem na mesma. E assistir o ator Matheus Nachtergaele em cena é não só uma lição de interpretação, mas também de entrega e de generosidade. É de grande coragem manter uma produção como essa. Sem dúvida, há que se tirar o chapéu pela iniciativa.

É fundamental que atores consagrados não se acomodem diante de sua arte, diante dos próprios questionamentos e a refletir e a traduzir toda a inquietação e a angústia em seu trabalho. Às vezes, é mais cômodo buscar o óbvio quando já existe a facilidade de uma estrutura. O que não é o caso aqui, pelo contrário. A profundidade do teatro-pesquisa não deve ser uso exclusivo de grupos alternativos ou de um teatro underground. É preciso que todo artista, independente de seu "status" perante a mídia e o público, continue sempre carregando consigo a inquietação, a vontade de gritar, de transformar. Continue sempre sendo um amador, no bom sentido, no sentido de amar a arte!

Em "Woyzeck, o Brasileiro", há um pouco de tudo isso. Há uma belíssima e competente produção, sem dúvida, mas há também a necessidade de se mostrar as feridas, os nossos pesadelos, o não conformismo com este mundo cão. A obra de Büchner exposta aqui, de maneira tão acessível, traduz parte de nossa história, parte da alma humana; independente de cor, credo ou classe social. Embora, justamente nestes pontos, a adpatação pudesse ter tido um maior apego ao "escremento" que ao "virtuoso". Ainda assim, amor é amor, humilhação é humilhação, dignidade é sempre dignidade. O que muda? Cada um tem seus próprios limites.

Para ir além
Woyzeck, o Brasileiro está em cartaz no SESC Belenzinho até o dia 3 de agosto. Sábados e domingos às 21 hrs. (Av. Álvaro Ramos, nš 915 - Tel:. 11 6602-3700.

Rennata Airoldi
São Paulo, 18/6/2003

 

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