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Sexta-feira, 11/7/2003 Lulu Santos versus Faustão Urariano Mota A última pérola expulsa pelo Porcão da tevê foi uma jóia de rara educação. Para quem não sabe, relataremos os antecedentes brevemente. No domingo 22/6, o compositor e intérprete Lulu Santos foi ao Domingão do Faustão. Ali deveria cantar uma série de músicas, e para isso mobilizou toda uma equipe, que permaneceu à disposição da emissora durante pelo menos 10 horas. No entanto, logo ao fim da primeira canção, o compositor foi interrompido, porque deveria ceder o espaço e o lugar às "videocassetadas", uma sucessão de quedas, pancadas e dor filmadas que são um sucesso. Os acontecimentos imediatos a essa interrupção, fora do ar, podem ser conhecidos no blog do compositor, o www.lulusantos.com.br. O certo é que Lulu Santos, por estranhar o descumprimento do que fora acertado, foi tratado à base de "'grandes merdas', 'grandes merdas' você é", pela produção do programa. Para quem acha que esse tratamento a um artista chegou ao extremo, vem mais. A capacidade de insulto é uma criação. No domingo 29/6, o Porcão da tevê, muito indignado, pôs no ar toda a força e potência do seu veículo contra o humilde blog do artista. Dentre outras coisas, afirmou, dizendo melhor, escoiceou: "Lulu, vamos deixar de frescura!". E completou, sem transporte e sem pausa, como se se dirigisse à produção do programa: "Solta a franga!". Em ambas exclamações, o que se insinuou, o que se insinuou não, o que se expressa é: "Lulu, vamos deixar de melindres, pára com o excesso de delicadeza, isto é coisa de maricas". Passando ao largo do evidente conteúdo de grosseria, fechando os olhos ao absoluto desrespeito a uma pessoa que apenas reclamou um legítimo direito, este caso, esta patada, encerra algumas claras lições: * Lição 1 - Não espere delicadeza e civilização do mundo atual. Isso de um modo geral. Mas de um modo particular, não se frustre: a lei geral permanece. * Lição 2 - Arte e Artista são mercadorias. Diferentes das demais mercadorias, é claro. Jamais um artista atingirá a dignidade de um carro zero quilômetro. * Lição 3 - Portanto, artista nenhum se julgue uma personalidade. Em algum lugar, sempre haverá um Faustão para fazer o artista cair em si. Mas ele deve, antes de cair, olhar bem se já não lhe retiraram a cadeira. * Lição 4 - Um traço, um poema, uma canção. Arte é essa coisa inútil, supérflua, que qualquer animal faz. Por que esses indivíduos se julgam tão importantes? Qualquer artista sempre recebe mais do que merece. Aliás, nenhum deles merece nada. * Lição 5 - Qualquer empreendimento, qualquer jornal, qualquer programa de tevê passa muito bem sem a arte. A oportunidade que se dá a um artista de aparecer em um programa é uma obra filantrópica. No dia em que as campanhas contra o câncer forem mais agressivas, a arte desaparecerá da televisão. * Lição 6 - Adaptado a esse contexto, Antônio Maria foi um profeta, quando afirmou que era a favor do câncer. E Stanislaw Ponte Preta é um iluminado, pois escreveu que a cultura recebe um importante estímulo da televisão, desligada. Para os limites deste artigo, o número de lições já basta. De passagem, anotemos que o mundo atual envolve e polui até mesmo a criação que deveria contestar o grande mercado. Por exemplo, para falar da casa na própria casa: a veiculação de artigos, ensaios e produções literárias na internet. Quantas vezes os editores de sites se impedem de pedir algo mais que a redação de matérias a seus colaboradores? O impedimento que sentem se dá em razão de, sendo o seu um site livre (vale dizer, prestem atenção: LIVRE=SEM DINHEIRO), o impedimento se dá porque os editores não têm com que pagar as colaborações que recebem. (Como se já não houvesse outra moeda de troca: o prestígio do site que divulga o nome do autor na rede.) Esse peso do grande mercado também se dá nos Prêmios aos textos veiculados na Internet. Entre os critérios eleitos não há um só que premie a Liberdade de Pensamento, que é, salvo engano, a principal característica do meio. Pelo contrário, elegem-se os avanços e recursos técnicos, que fariam a substituição da palavra poética, liberta, que não sobrevive na grande imprensa. Elege-se, enfim, uma tradução do Oscar para efeitos especiais de Hollywood. De volta à poluição direta sobre a arte, importa muito pouco escrever-se que televisão é business, é negócio. Isso, que para um artista é um pesar, uma tristeza, para os empresários é uma leda, risonha e óbvia constatação. Seria como dizer que a água é um precioso líquido, ou, no seu caso, que dinheiro é sólido, é concreto, é gozo e beleza pura. No que, reconheçamos os que vivemos sem, têm boa e certa razão. Mas esse reconhecimento, despertamos além de nossas necessidades, vai longe de ser um conformismo à conformação do mundo que esse business faz. Se a arte, para o bom burguês, é um quadro que decora a sua sala, se ele compra por metro quadrado essa produção da alma; se a assinatura do pintor é griffe, se um poema, para o burguês, é uma declaração melosa à luz do luar ou do contrário nada é; se um romance só vale se for uma reencarnação de Harry Potter, se uma música só vale se entreter as viagens de um veículo, automóvel, avião, ou as idas e vindas de uma fornicação; se uma canção tiver o seu valor na medida em que aumente a venda de sabões e sabonetes, e se, finalmente, o artista é um vagabundo, a quem todo homem prático deve expulsar da sua frente todas as vezes em que esse vagabundo se julgar possuidor de alguma dignidade, então àqueles que defendem essa machucada pérola da arte não cabe calar. A porcos não se deitam pérolas. A Porcões muito menos, porque as misturam a sua ração, e as mergulham por entre o tubo digestivo. O resultado já se sabe: descomem-nas, em meio a excremento. Como no Domingão do penúltimo domingo. Urariano Mota |
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