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Quinta-feira, 14/11/2002 A Erva do Diabo, de Carlos Castaneda Ricardo de Mattos No meu caso, o primeiro contato deu-se com o livro A Erva do Diabo, publicado em 1968, no qual é apresentada a figura de Don Juan Matus - que não é meu parente -, guia de Castaneda. O trabalho inicial deste referia-se às plantas de uso medicinal utilizadas pelos índios daquelas localidades. Contudo, apresentado no Arizona a Don Juan, o antropólogo embrenhou-se pela gnosiologia. O título original da obra é justamente The Teachings of Don Juan. Don Juan Matus é o nome fictício do índio yaqui originário de Sonora, México. Como o discípulo, seu passado também não é revelado além do admitido por ele mesmo. Um nome não deve ser repetido aleatoriamente, e se conhecido, gera poderes sobre o nomeado. Certa vez, li em algum lugar que o nome de Deus não seria revelado aos judeus para que estes não se julgassem com algum poder sobre Ele. Por todo o livro vemos conceitos já encontrados em outros lugares, com outros nomes ou vestes, com variados graus de aprofundamento dos estudos. Um exemplo é o perigo que o Conhecimento pode representar, já mencionado nos livros sapienciais do Velho Testamento. De fato, o Conhecimento traz consigo a Responsabilidade, e se sabemos, por exemplo, que algo deve ser feito ou deixado de fazer, tornamo-nos responsáveis, queiramos ou não, pela ação ou omissão contrária ao sabido. Voltando a Don Juan, deve-se verificar não ser ele nenhum santo ou, naqueles dias, uma lenda viva. Posteriormente, sim, ganhou certa aura mística, quando na verdade apenas elegeu um aluno para transmitir, de forma perceptivelmente séria, antigos e importantes ensinamentos de seu povo. É bom frisar que o próprio Castaneda iniciou suas investigações com a finalidade de registra-los antes que se perdessem. O livro divide-se em duas partes. A primeira é a seleção e organização dos ensinamentos. Conforme Castaneda, as repetições foram suprimidas e os assuntos dispostos n'um sistema, inda que violada a cronologia. É a parte mais fluente, incluindo até cenas cômicas com um cão. Na segunda parte todo o aprendizado e as conclusões são expostos cientificamente, pois deve-se lembrar da destinação universitária desta obra. Na primeira parte, Don Juan tem por escopo levar seu aluno à aquisição de conhecimentos, aquisição esta acompanhada n'um primeiro instante por plantas alucinógenas: "No contexto específico de seus ensinamentos, dom Juan associava o uso da Datura inoxia e da Psilocybe mexicana para a aquisição do poder, um poder que ele denominava 'aliado'. Associava o uso da Lophophora williamsii à aquisição da sabedoria ou o conhecimento da maneira certa de viver". Este poder aliado e conceituado mais adiante: "Um 'aliado', disse ele, é um poder que o homem pode introduzir em sua vida para ajudá-lo, aconselhá-lo e dar-lhe a força necessária para executar atos, grandes ou pequenos, certos ou errados. Este aliado é necessário para realçar a vida de um homem, orientar suas ações e aumentar seus conhecimentos". Peiote é o nome popular da Lophophora williamsii, um cacto do qual se extrai a mescalina, mescal ou mescalito. Esta substância é utilizada desde épocas imemoriais em rituais religiosos na América Central e Sudoeste dos Estados Unidos. Não existe no Brasil. Embora eu ainda não os tenha lido, são muito citados os ensaios de Aldous Huxley sobre sua experiência com esta droga: Portas da Percepção e Céu e Inferno. Datura é o nome usado por várias plantas solanáceas - dicotiledôneas gamopétalas, i.e. Pétalas soldadas - consistentes em árvores e arbustos venenosos, dentre os quais destaca-se por seu maior grau o estramônio ou figueira do inferno. Nativa da América do Norte, todas as suas partes contêm quantidades significativas de atropina e escopolaminas, além dos compostos relacionados. O cogumelo provavelmente utilizado por Don Juan é o Psylocybe mexicana, o "cogumelo sagrado", do qual se extrai a psilocina. Aproveitado nos ritos pelos nativos daquele trecho da América. No Brasil, há o Psylocybe cubensis e uma espécie do gênero Paneoulus. Todas estas plantas são chamadas "divinatórias", pois acreditavam os usuários ancestrais que elas colocavam o feiticeiro em condições de dizer o futuro. Os efeitos dos alucinógenos são os descritos por Castaneda: grande excitação cerebral, visões coloridas, sonhos agradáveis, sensações inusitadas, êxtases profundos, impressão de viver n'outro plano e algum desconforto físico ao retornar à lucidez. O que denominamos "alucinação", Don Juan acreditava ser um "estado de realidade não comum", no qual tencionava adquirir sabedoria. Lastimável. "Alucinação" significa desvario, falta de razão; é a interpretação como real de algo irreal. Difere da ilusão por esta ser uma percepção errônea, por meio de sentidos perfeitos, de algo real - ilusão de óptica. Dispensa comentário o ato de valer-se alguém da alucinação para entender o real. Pobre ser humano, incapaz de lidar sequer com a realidade em que vive, busca outros "níveis" e mais se perde do que se esclarece. Conhecimento exige esforço e perseverança, trabalho ininterrupto e dedicado. É relevante assinalar que Castaneda não estimulou o uso indiscriminado de qualquer alucinógeno. Se mudou de opinião, ignoro, mas na entrevista concedida à revista Veja - número 356 ano 1975 - ele afirma ser mínimo e provisório o uso dessas substâncias apenas até o aprendiz conseguir atingir sozinho o estado ou realidade procurados. Oxalá nenhum adolescente cisme de ler o livro e tentar alguma experiência por conta própria, a despeito dos detalhes fornecidos. Pode tornar-se ainda mais cretino ao invés de adquirir algum conhecimento efetivo. Perceba-se que eu não critico Don Juan, transmissor de conhecimentos ancestrais de seu povo, nem Castaneda, que ao menos nesta obra, relatou o que viu e analisou os fatos segundo o programa da instituição a que pertencia. O que observo é a atitude de algumas pessoas que, apesar das toneladas de informações disponíveis, resolvem realizar viagens de regresso doloroso ou mesmo inexistente e encastelam-se em suas fantasias. Buscam atalhos para algo que nem sabem definir numa primeira abordagem. Querem a "realidade superior", mas insistem em não reconhecer a amplitude da realidade em que estão mergulhadas. Ao começo deste ano a mesma revista trouxe uma reportagem intitulada Literatura Tóxica, a respeito do então recém-lançado The Road Of Excess, livro de autoria do crítico inglês Marcus Boon. Nesta obra são elencados escritores que trabalhavam em estado de alienação provocada, ou eram notórios usuário de álcool e outras drogas lícitas ou ilícitas, valendo-se ou não da desculpa de buscar uma "realidade superior". Já citei, em minha coluna sobre Surrealismo, as experiências de André Breton e partidários. Há que diferenciá-los dos demais: Breton queria saber, através de experiências acompanhadas, como seria a produção artística desvinculada da razão e da lógica. Sumária a minha opinião sobre este assunto: se o indivíduo for um gênio, sê-lo-á apesar do uso de entorpecentes. Se for uma besta, continuará sendo. E com o risco de piorar. Ricardo de Mattos |
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