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Sexta-feira, 25/7/2003
Da dificuldade de se comandar uma picanha
Eduardo Carvalho

A picanha-recruta

A democracia e o capitalismo - além de serem, de certa forma, interdependentes - compartilham diversas características em comum, inclusive esta: são, respectivamente, a pior forma de se organizar uma sociedade e o mais injusto modo de produção. Excluindo-se todas as outras opções. Não são perfeitos, nenhum dos dois, e ninguém acredita nisso, mas podem funcionar, numa sociedade civilizada, de modo eficiente – ou, digamos, melhor do que um sistema oligárquico ou comunista. Numa sociedade civilizada, repito: onde tanto os valores democráticos como o respeito à livre iniciativa sejam, pelo maioria, assimilados e estimulados. Consideramos o Brasil, oficialmente, uma democracia capitalista, mas a verdade é que, na prática, ainda estamos longe disso.

E, me parece, a maior barreira a esse desenvolvimento, no Brasil, é a própria desconfiança popular brasileira, tanto na democracia como no capitalismo. Como se tivéssemos aderido a eles por acaso ou por obrigação, e não por vocação. Aconteceu. Ninguém, por exemplo, é assumidamente contra a democracia, mas, de tantas barbaridades que fizeram em seu nome, sua imagem acaba desgastada entre os desinformados, que confundem o que se fala com o que realmente é. Pior ainda é a situação do próprio capitalismo, que é maliciosamente confundido, pelos nossos intelectuais, com imperialismo – e, portanto, sinônimo forçado de miséria e de fome. Por serem, então, pela opinião popular, desaprovados informalmente – por ignorância ou preconceito –, a definitiva adesão brasileira a uma política democrática e a uma economia capitalista permanece adiada. E ficamos com a bagunça que sobra.

Acontece que, vivendo nessa bagunça, o maior prejudicado é o próprio brasileiro, constantemente enganado por políticos safados e empresas corruptas – ou, na melhor das hipóteses, incompetentes. Porque tanto a democracia como o capitalismo exigem, mais do que tudo, uma participação vigilante e constante, do eleitor e do consumidor. Por descaso ou preguiça, porém, e sobretudo por não acreditar na democracia nem no capitalismo, a população acaba, ela mesmo, enganada, sofrendo porque não quer sofrer. No caso político, nossa incompetência para o voto decente é óbvia: basta observar que promessas soltas e apelos populistas ainda rendem votos e elegem representantes, de síndicos a presidentes. Como consumidor, o brasileiro é disfarçadamente maltratado, porque, como seus antecedentes nativos, continua passivo e ingênuo. Recebendo um serviço incompetente de empresas nacionais – que ainda desconhecem o mercado competitivo internacional –, e vítima de agressivas estratégias de multinacionais – que, por sua vez, se aproveitam da moleza do mercado brasileiro para deitar e rolar.

Por exemplo: fui almoçar, num domingo, no bar Frangó, em São Paulo, que oferece uma rara variedade de cervejas estrangeiras. Pedi uma água com gás; veio sem. Pedi uma cerveja Norteña; o garçom, até abrir a cerveja, demorou uns dez minutos, deixando-a fechada em cima da mesa e virando de costas. Pedi um prato para servir aperitivos; demoraram, para me entregar o prato, mais uns dez minutos, que esperei de pé. Pedi um frango assado; e o Frangó, no que deveria ser especializado, não podia me servir antes de 40 minutos. Para substituir, pedi, então, uma picanha, que sairia em 20; depois de 25 minutos, onde está a picanha? “Ah, senhor. Me desculpe. É que, sabe aquele garoto para quem você pediu a picanha? Então. Ele não é garçom. É só ajudante. Sua picanha ainda não foi comandada (sic)”. Claro, claro. Então a culpa deve ser minha. De ter escolhido um bar tão distante e, ao mesmo tempo, tão ruim. Que não conseguiu sequer acertar em um simples e único serviço.

Da Freguesia do Ó, num pequeno e escondido bar, podemos, acredite, generalizar, partindo para uma supostamente moderna empresa de telefonia móvel. Porque os casos não são específicos nem isolados. Ligue para a Tim – como foi o meu caso –, ou uma concorrente, e diga que pretende comprar um aparelho celular. Você será imediatamente atendido – e seu problema, digamos assim, solucionado, numa velocidade impressionante. Agora, depois de assinante: ligue novamente para a empresa, para tirar uma dúvida ou solicitar uma assistência. Você esperará, primeiro, na linha, ouvindo musiquinhas chatas e frases falsas (“Sua ligação é muito importante para nós”, etc.), por, literalmente, pelo menos uns 15 minutos. Pergunte, como eu, como funcionaria o seu aparelho em Moscou, e quais as tarifas cobradas naquela localidade (a empresa não é, afinal, internacional?). A resposta não vem, nem depois de mais de 20 minutos. Se a ligação não cair – e você precisar repetir toda a operação, como, mais uma vez, aconteceu comigo -, você se assustará com o absurdo preço cobrado. Por um serviço que, suspeito, será péssimo.

É um traço especial da cultura brasileira, essa tolerância calada, que as empresas aproveitam para multiplicar os seus lucros. As nacionais já cresceram assim, assimilando, desde a fundação, uma postura que trata o cliente como se estivesse fazendo a ele um favor, e não um serviço – em troca de dinheiro. E as estrangeiras, como a Tim, correm para abiscoitar o mercado brasileiro, onde, apenas com propaganda, garante-se o sucesso.

Não é, portanto, que o capitalismo seja sempre terrível, e que empresas necessariamente suguem todas as migalhas do consumidor. É que simplesmente, por não acreditar nele, o brasileiro ainda não aprendeu a se comportar num regime capitalista. Sem admirar as suas imbatíveis qualidades, não reconhecemos também os seus eventuais defeitos. E – reclamando de modo abstrato da selvageria do mercado – esquecemos que somos os próprios responsáveis pela selva em que nos arrastamos.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 25/7/2003

 

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