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Sexta-feira, 29/8/2003
A nova escola
Urariano Mota

No primeiro dia de aula, o aluno entra na sala, senta-se e espera a aula de matemática. Toca a campa, a porta da sala está aberta, mas o professor não entra. Passam-se 45 minutos. Pelo horário, é chegada a hora da aula de biologia. A campa mais uma vez toca, da turma vê-se um cão sarnento que passa no corredor, mas o professor de biologia não entra. Soa então a hora da aula de filosofia. Finalmente será a boa hora de Aristóteles e Platão. Seria. Porque de todos os lugares só vêm o barulho, os gritos e caos das turmas libertas da sisudez dos filósofos. Em lugar de "os jovens são coléricos, irritadiços e geralmente deixam-se arrastar por impulsos, pois são dominados pela fogosidade", mais propriamente, como uma ilustração das palavras do filósofo ouvem-se "a mãe! - a sua! - aqui, ó!" , e outras interjeições da idade. Chega o fim do turno. Em vez de Física, Matemática, Biologia, Filosofia, em lugar de toda essa chateação, há um congraçamento, uma intimidade estreitada no maior calor, barulho e algazarra. Volta para casa.

Nos dias que se seguem, em razão mesmo da capacidade humana de generalizar, o estudante não mais espera. Este é o primeiro passo da sua aprendizagem. Ele vai à escola, namora, bebe, fuma, agarra-se, esbofeteia-se, nas salas, nos corredores, nos banheiros, e de tal maneira, e com tamanho desenvolvimento da percepção, que nem sente mais a dura passagem das horas. Não sente, mas aprende. A passagem das horas, que ele não vê, é a esta altura compreendida como o usufruto, o gozo guloso do tempo. E a gula, o que é: o instinto solto, no horário e espaço do colégio, que perpetra um assassinato juvenil do tédio. E os dias, e os meses passam, e assim se chega ao fim do ano. Então surge um incômodo, porque chega a hora de um questionamento: Como promover os estudantes, como fazê-los progredir, já não digo na alma, mas digo, como adiantá-los para uma nova série, se durante o ano letivo estudaram piercings, tatuagens, fumo, insulto, pornografia e escabrosidades escritas? Como? Deixemos por enquanto, suspendamos aqui essa interrogação como uma espada de Dâmocles. Suspenda-se para que se divulgue ao mundo:

No Brasil criou-se a escola sem professores.

A instituição OCSENU, ou a UNESCO invertida, premiaria a inovação. A Escola sem professores do Brasil. Não há exagero, leitor. Nada do que foi dito até aqui, salvo o cão sarnento que passeia nos corredores, nada do que se seguirá é invenção deste cérebro doentio. Está nos jornais da semana: "Ensino Público - Escolas estaduais iniciam semestre sem professores". O nosso esforço é o de procurar entender, se nossa limitada experiência permitir. É dos jornais: "Segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco, o déficit é de 10 mil docentes". Ao que responde o chefe de gabinete da Secretaria de Educação, como se corrigisse um exagero: "Somente não há professores em 10% de toda a rede estadual". E continua, sem se dar conta do que diz: "Esperamos concluir o levantamento da carência até outubro, ou, no máximo, novembro". Ora, se o levantamento, a estatística, se conclui até novembro, quando dezembro chegar, as escolas sem professores já estarão bem acostumadas sem. É natural e faz sentido: quem já passou o ano inteiro sem professor já se adaptou à nova pedagogia. E nem precisamos recorrer à imaginação para compreender como. Basta reproduzir o que lemos nos jornais.

"Na Escola Gercino Pontes, na Imbiribeira, não há professores de: Matemática (tarde), História (tarde), Geografia (tarde), Educação Artística (noite), Geografia (noite), Religião (noite) e Sociologia (noite). Para resolver o problema, a carga horária dos professores foi reorganizada, de modo a não deixar turmas inteiras sem aula". Vejam então o que extraiu dos miolos o pobre do diretor: "Na 7a. série, por exemplo, são 3 aulas de História. Decidimos diminuir para 2. A terceira aula se transformou em geografia". São tão parecidas, não é? Mas vejam a outra solução, que amplia a miséria com uma melhor distribuição da aritmética: "Na 7a. série há 5 aulas de Matemática. Como os alunos do 2o. ano do Ensino Médio estão sem professor da disciplina, pedimos ao responsável pela 7a. para ali ministrar somente 3 aulas. As outras 2 são para o 2o. ano". Brilhante, não? Quem já possuía deficiência com 5 aulas, certamente melhorará com 3. Mas quem nada possuía, ganhou 2, que é para depois não sair por aí dizendo que não tem professor.

Já na Escola Othon Bezerra de Melo, no Ipsep, se descobriu um método de deixar um só professor em dois lugares diferentes, ao mesmo tempo. Com a palavra, o mestre: "a solução para não deixar os alunos da 5a. e da 6a. séries da tarde sem aula de Matemática foi juntar as turmas". E os programas distintos, como harmonizá-los numa só aula? "Era melhor com as classes separadas", reconhece o mestre. "Tive que parar o cronograma", palavras do professor, "tive que atrasar o cronograma de uma delas para que a outra, que estava atrasada, conseguisse acompanhar". Precisa de comentário?

Na lista de escolas sem professores, aparecia uma que particularmente nos tocou, o Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. Ali não se ensina mais Matemática, Biologia, Sociologia e Filosofia. Movido pela lembrança dos bons tempos em que arremedamos uma aprendizagem em suas salas, ligamos para a Secretaria de Educação.

- Eu gostaria de ensinar no Alfredo Freyre. Como voluntário. Eu penso que poderia ensinar Matemática e Filosofia.

- O senhor é formado em quê?

- Em Jornalismo.

- Não pode... sem habilitação na disciplina, não pode.

- Nem de graça?!... Mas os alunos podem ficar sem professor.

- O senhor entenda. O Estado não pode sair pegando qualquer um na rua para ensinar.

Faz sentido. O Estado pode construir prédios e chamá-los de Escolas. Ainda que desabem nos tetos, ainda que os banheiros explodam sujos, ainda que sejam Escolas sem água, sem luz, sem esgotos e sem professores. Faz sentido. Imaginem só se o Estado fosse pegar para a Nova Escola mestres e esgotos na rua.

Urariano Mota
Olinda, 29/8/2003

 

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