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Sexta-feira, 5/9/2003
O Sociólogo Machado de Assis
Daniel Aurelio

Sociólogos, em geral, são fascinados por triunviratos. Tanto quanto amantes da cultura pop por listas de qualquer migalha. Não por outra razão, aliás, que fornadas e fornadas de calouros vêem os dois anos iniciais de seu curso serem dedicados, quase na íntegra, a análise das obras - inegavelmente inspiradas - de Émile Durkheim, Max Weber e, claro, o "cristo redentor" das ciências sociais, Karl Marx. Mesmo quando são abordadas dissidências ou desdobramentos teóricos da trinca de ouro - ou três porquinhos, assim chamados, singelamente, pelos alunos - a sombra absoluta de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" (Weber), " As Formas Elementares de Vida Religiosa" (Durkheim) e "O Capital" (Marx) se faz perceber. É simplesmente impossível desvincular-se desse legado. Jurar uma ruptura já é afetar a própria negação que a gerou. Criar um antídoto ou saída alternativa requer, no mínimo, reconhecer a relevância do adversário.

O Brasil também tem seu trio parada dura, intocáveis inclusive quando refutados: Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Ou seja, "Formação do Brasil Contemporâneo", "Raízes do Brasil" e "Casa Grande e Senzala". Tivemos Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro também, ícones do bom intelectual, mas assim como você só conhece o mundo pós-revoluções pela via dos clássicos instituídos da sociologia universal, a única maneira de entender-se o salto executado pelo Brasil "café com leite" para um dos maiores pólos industriais do planeta (cabe réplica) é por meio do ávido e compenetrado estudo das três trajetórias. Os dois anos finais da matéria, ao menos aqui em terra tropical, levam a tripla assinatura tupiniquim. Forja-se um pesquisador com método e seis cabeças privilegiadas que fundamentam a genealogia do saber social.

Não decalco de forma alguma outros gênios, porém é notório que Weber e Durkheim são influência decisiva para Pierre Bourdieu e todos os teóricos empiristas e elitistas. E a Escola de Frankfurt não existiria, não com o aspecto brilhante e pujante do seu princípio, sem Marx. É quase um silogismo científico isso.

Estudo sociologia. Mas não sou cego. Ouvi dizer que sociólogos precisam desenvolver uma linguagem própria, travada - mal ajambrada se possível - um dialeto inteligível apenas aos introduzidos em estágio avançado. Se for verdade, desconheço mais tola idéia. Cartilha sagrada dos ruins de texto. A história comprovou que literatos como Flaubert, Goethe ou Dostoievski tinham aguçada sensibilidade para as construções sociais, desnudavam em prosa fina anos de pesquisa e ainda agradam aos sentidos com textos limpos, singulares e belos.

Muito se discute sobre o papel da literatura no entendimento da sociedade moderna, como se suas personagens e imagens poéticas fossem tão somente uma acentuação, de variado grau artístico, do senso comum. Cobra-se resultados estatísticos e plausíveis de suas divagações quando sua função é justamente o oposto. O homem nunca foi bem um oceano de coerência e concisão.

Aproveito o escopo do artigo para lançar minha sugestão: incluir Machado de Assis como leitura em viés acadêmico nas ciências humanas, promovê-lo para além de seu sabido brilho literário, dividi-lo com os estudiosos das relações entre literatura e sociedade, tirá-lo das oscilações laterais para o palpitante centro da órbita. Estou, pois, visivelmente sob impacto de "Melhores Crônicas de Machado de Assis", compêndio de seus melhores artigos para os mais prestigiosos periódicos de sua época (Correio Mercantil, Revista O Espelho), trabalho organizado pela professora de literatura da USP Salete de Almeida Cara e publicado pela Global.

A começar pela ironia machadiana, impregnada em nossa i.d coletiva de brasileiros, um olhar perpetrado entre a fleuma e a crueldade, um balançar de ombros cínicos diante dos eventos comezinhos da vida coletiva. Essa ironia, talhada em pena de diamante nos aromas cítricos de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" aparece em doses desmedidas de virulência e galhofa nos seus pitacos semanais. O escritor, além de observar com apurada acuidade nossas mediocridades, engajava-se na crítica sócio-política, arriscava-se em economia e nem por isso vilipendiava seu leitor com pleonasmos e códigos morse. Chegava as mesmas "constatações empíricas" e de lambuja contribuía com seu dízimo de criatividade para um planeta menos burro.

Exemplos? Machado desmascara aqueles que aponta serem parasitas e fancários das letras e, de forma chocante, adianta em mais de um século a discussão sobre a reforma previdenciária. Assusta de tão preciso. Quer maior objetividade que isso?

A palavra pode seduzir e guiar o leitor para o ninho das predileções pessoais do autor. E o responsável por "Dom Casmurro" fora especialista nesse ofício. Talvez seja essa a ressalva menos esdrúxula dos adeptos do cientificismo xiita. De resto, dá asco a agonia dos maus redatores diante da força machadiana e de outros que o precederam ou atravessaram, com espetos de graça e fúria, o século XX. Caricaturas do fancário, parecem fotocópias de Brás Cubas. Esse mundo, de fertilidade ou pragmatismo, é um só. E se a sociologia costuma ir ao ataque com três avantes, que tal acioná-los com o estilo ora elegante, ora impetuoso, de um grande escritor como Machado de Assis?

Sintonia difusa entre o engenho e a arte, só a ironia nos redime.

Do Construtivismo Oco

A mente precisa do hiato. É esse vazio, retorcido vazio a batucar cessar fogo, que vem lançar seu pólen por sobre as piruetas dos reis da selva de pedras. A gente carece de carências intelectivas.

Muito se escreve, já se escreveu, ou está por brotar das redações, dos computadores pessoais, dos papeis de pão das bibocas metropolitanas. Escreve-se demais, aliás. Não há tanta coisa relevante no universo que justifique o verbo desenfreado. Informa-se sobre a falta de informação, dos furúnculos e das frieiras, do ser ou não ser.

Ninguém se preocupa mais com o nada. A cabeça atirada na escrivaninha, os socos no teclado, a náusea provocada pelo olhar periférico e veloz a espera de um estalo. O artigo perfeito que nunca vêm.

No lugar da ausência, toneladas de bazófia da boa. Abriu-se o viveiro dos abutres. Vou codificar-me. Quem sabe entendo cá meus botões?

Uma nação de prodígios. Um dado novo a cada ranger do ponteiro. Micro-chips, microchapados. Insustentáveis em seu elo entre as coisas e as coisas pelas coisas. Coisa de doido isso.

Cada soldado morto na Libéria e cada medalha metida em nosso peito a própria morte. Está chovendo em Viena. Na Guatemala tempo bom. Quem vai querer recauchutar as vergonhas em até sete centímetros?

Uh! Esse texto é efêmero como viço de pele. Semana que vem tem outro. A prazo. A vácuo. A troco de qualquer afago teu, leitor freguês.

Prefiro Dylan. Vinho tinto. Tchecov e Zola. Os gostos que protelei. Qualquer coisa que não me aproxime dos meus cornos.

A carruagem que não enferruja é uma propaganda de refrigerantes. Entramos pelo cano fumegante das palavras pelas palavras. Cala-te versos mal metrificados. O metrô está em greve. Não. Está. Não. O hiato entre a próxima onda eletromagnética de um céu que já foi dourado como as cinzas do teu amor ardil. Qualquer motivo para perder-me de vista.

O hiato entre Dylan e Zola é um vinho tinto dos que não bebo. O hiato entre o artigo de hoje e de amanhã é a promessa que é dívida. O hiato entre mim e o bronze do ponteiro é uma nação de idiotas prodígios ávidos pelo meu pior. O hiato entre a greve e o vácuo é um bocado de prazo a juros no contracheque das soluções micro-medianas. O hiato entre mim e você é uma medalha insustentável em nossos códigos a troco de qualquer afago teu. A carruagem não toma chuva em Viena. Não sou Chico Buarque. A minha construção é de celulose que não recauchuta o efêmero das carências intelectivas. Eu não sou um micro-chip. Não sem antes lutar. Deixe-me em paz a atear fogo no pólen de um artigo retorcido. Que não sou mais um blog a partilhar frieiras e furúnculos.

Para ir além





Daniel Aurelio
São Paulo, 5/9/2003

 

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