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Sexta-feira, 3/10/2003
Apologia dos Cães
Ricardo de Mattos

Havia também um mendigo chamado Lázaro, o qual, coberto de chagas, estava deitado a sua porta, desejando saciar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; porém até os cães vinham lamber-lhe as chagas.” (Lc 16, 20-21)

O dia dezassete de setembro de 2.003 foi o último da minha pobre Úrsula – vulgo Ursa – neste mundo. Morreu após a longa alegria que nos proporcionou e uma breve agonia. Tinha doze anos completos e ficamos com dois dos nove filhotes paridos após a única prenhez. Duas, na verdade: Serena e Cigana. Ursa era uma cadela de raça pastor-alemão relativamente apurada. Detestava, como eu detesto, fogos de artifício, por vezes sendo necessário recorrer a tranqüilizantes. Transmitiu esta aversão a pelo menos duas filhas. Escolheu meu pai como dono – ou membro alfa de sua matilha, como preferem os estudiosos – mas atendia a todos e a todos recorria em sua eterna carência. Falta de agrado não era, pois vivíamos aos abraços. De todas as pessoas de casa, apenas nossa faxineira fugia-lhe da predileção. Qualquer um poderia ser seu predileto, mesmo as pessoas vistas uma vez na rua e nunca mais. Um afago era suficiente. Seu posto era a porta do quintal, defronte a qual se deitava e no melhor da sesta virava-se com a barriga para cima apoiando nela – na porta – suas pernas. Abríamos a porta e ela tombava com as patas para dentro, acordava e balançava a cauda, ainda com os olhos pejados de sono. Logo, porém, corria latindo em busca das outras.

Suas filhas saíram sui generis por herança paterna, um pastor heterodoxo. Serena é menor que um pastor alemão n’um palmo de altura e junto a outros dois, nasceu com meia cauda; a Cigana consegue disfarçar bem sua mestiçagem. A ninhada nasceu na madrugada do dia sete de abril de 1.994. Uma semana antes preparei o canil, embora a Ursa já tomasse providência autónoma, cavando um buraco entre as azaléias, muito antes do prazo previsto. Deitou-se sobre a cama arrumada e encarou-me como a dizer: “Não é que sua ideia é melhor”? Desistiu do buraco e recolheu-se neste ninho mais protegido. Mesmo assim, uma ou duas noites depois precisei recolher filhotes espalhados pelo quintal. Dois meses após saía pelo gramado acompanhada do batalhão sempre faminto. Em caso de briga, separava os adversários daquela maneira típica de mamífero levantar o filhote pelo pescoço. Apesar de Serena e Cigana atingirem a idade adulta, ainda tentava içá-las. Depois passou a prendê-las pelo focinho, entre a noz e os olhos. Este acto, soube-o depois, tinha a finalidade de reafirmar seu domínio sobre elas.

Adorava brinquedos, bastando-lhe qualquer caco de tijolo encontrado no quintal. Nunca bebeu água sem molhar tudo ao redor e comia deitada. Teve também seus actos de vandalismo no arranhar a porta, matar meu garnisé branco e vários outros animais vindos dos terrenos vizinhos, como galinhas e gambás. Seu “hobby” era cavar trincheiras no quintal, talvez reminiscência dos seus antepassados utilizados em batalhas. Pensei tratar-se de vermes e várias vezes vermifuguei-a, variando a medicação. Dizem ser mau agouro o cão cavar buracos, pois profetizaria a morte dos donos. De qualquer forma, nós ficamos e ela partiu. Sendo uma eterna criança, foi o flagelo de Diana, outra pastora bem mais velha, morta em 1.996. Esta contraiu cinomose, resistiu, mas perdeu boa parte dos movimentos das pernas traseiras, passando alguns meses a arrastar-se até conseguir andar novamente. Teve mais esforço e determinação que muita gente, já pude perceber. Certo dia, foi empurrada dentro da piscina pela Ursa, durante uma correria desta.

Não posso deixar de afeiçoar-me a estas criaturas e reconhecer-lhes os méritos e os problemas que causamos com nossa convivência nem sempre saudável. Tornamo-los, não sem certa dose de irresponsabilidade, dependentes de nós. Esta dependência até pode ser afastada n’uma geração, mesmo em centros urbanos, entretanto passamos a perseguir aqueles que descuidamos. Um animal incómodo pode ser condenado a um canil municipal, donde não sairá vivo na maioria dos casos. Na rua o cão sofre sem amparo e isso não lhe impede a nobreza de aproximar-se do mendigo, apegar-se, acompanhá-lo e defendê-lo. Não faço distinção: na rua paro e afago qualquer Merimbico que me passe pela frente. Todos têm minha consideração, seja um vira-lata puído de sarna, seja um puro-sangue premiado. Tive dois vira-latas sempre sorridentes com a minha chegada. Corriam na minha direcção com os dentes à mostra e gemendo, orelhas encolhidas e cauda balançando. Onde e quando aprenderam isso, ignoro.

Dois os santos católicos sempre representados com cães: São Lázaro e São Roque. São Lázaro é homenageado a dezassete de dezembro. Muito confundido com o irmão de Marta e Maria ressuscitado por Jesus Cristo. Contudo, toda representação traz o santo atacado de lepra (daí lazarento e lazareto) e acompanhado d’estes animais. São Roque é santo de origem francesa ao qual foi dedicado o dia dezasseis de agosto. Quando viajava de Montpellier para Roma, fez escala na cidade de Piacenza, fustigada pela peste, e aí dedicou-se ao tratamento dos doentes. Devido ao contacto, contraiu a doença e refugiou-se n’uma cabana a fim de a ninguém incomodar. Um cão mantinha o santo alimentado ao levar-lhe diariamente um pão furtado à mesa do dono. Ainda persiste no Nordeste e no Amazonas a promessa do jantar dos cães. No caso de ferida grave ou úlcera o doente faz, ou a São Lázaro ou a São Roque, a promessa de oferecer, se curado, um jantar aos cães de rua.

Câmara Cascudo, no excelente Coisas Que O Povo Diz, transmite uma lenda envolvendo os santos e seus animais preferidos. Registrada inicialmente pelo folclorista Daniel Gouveia, ensina que

Não se deve cuspir nos cães, porque depois da nossa morte, na longa travessia que se fará até chegar à casa de São Miguel, onde serão julgadas as nossas almas, sentimos uma grande sede, e neste longo percurso só encontramos a casa de São Lázaro; aí, se não cuspimos nos cães, somos servidos com água boa e fria, e ao contrário, somos acossados por dentadas implacáveis.

Curioso que o cronista Humberto de Campos dedica um dos capítulos de suas Memórias Inacabadas ao cão “Pensamento”. Conta que ao conhece-lo na casa de um parente, quase cuspiu-lhe. Quem sabe a singular celeuma após sua morte, concernente à autenticidade ou não de textos psicografados, não seja a confirmação da lenda, no sentido de um post mortem perturbado?

Duas vezes foi objecto de resenha n’este Digestivo Cultural o livro de Roger Grénier, Da Dificuldade de Ser Cão, lido por mim n’um dia. Cães são óptimos companheiros de leitura, caso compartilhem o gosto. A Ursa preferia jornais e revistas, inclinação transmitida à Serena. Há no cão César, pertencente a José Bonifácio, um antecedente para este gosto pela leitura informativa. O dito “Patriarca” conta que seu cão destroçava e mijava sobre os jornais com más notícias. Já a Cigana prefere os livros, embora mantenha-se sempre actualizada.

Dependendo da raça, um cão vive em torno de quinze anos. O filhote apega-se à pessoa e mantém-se fiel a ela por toda sua existência. Os dedos de uma só mão talvez sejam excessivos para alguém enumerar quantas de suas amizades humanas duraram tanto e com a mesma sinceridade.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 3/10/2003

 

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