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Segunda-feira, 13/10/2003 E cá já moiro por vós Ana Elisa Ribeiro São 16h25, hora boa para me lembrar do dia em que abri um livro pela primeira vez. Não sei bem que horas eram naquele dia e nem sei se eu mesma pude abrir o volume, mas consegui pôr os olhos no papel e divisar uns desenhos retos e oblíquos que minha mãe parecia solfejar. Adivinhei que ela detinha alguma técnica adiantada. E lamentei profundamente que eu não fosse, ainda, capaz daquele processo tão mágico. Um ano depois, descobri que, na escola, começaria a aprender a decifrar aqueles códigos e pensei: "Eis a passagem", como se fosse uma guerreira da Caverna do Dragão. A partir do dia em que consegui fazer conexão entre os sons e entre os sentidos, passei a ler tudo o que me aparecia na frente. E me exibia para os avós e tios, primos e vizinhos. Uma exibida desde criança. Lembro-me de estacar diante da estante de minha avó e tirar de lá um volume. Toquei a capa com carinho e ela disse: "Quer ler?". Enquanto perguntava, dona Carmen sorria como uma espanhola lasciva. Desisti da estante dela e fui atacar a da tia. Entre os primeiros volumes que toquei e li estavam Jane Eyre e Pimpinela Escarlate. Eram apenas o começo duma imensa coleção de leituras que me formaram e conformaram, me revolucionaram e transtornaram. A Coleção Vaga-lume fez parte da minha infância e transitou comigo até a adolescência. Não foi à-toa que fiquei sem dormir querendo saber no que daria o rapto do garoto de ouro. E também não eram em vão meus pesadelos por causa do escaravelho do diabo. Na oitava série, li Os miseráveis, e esse foi o divisor de águas da minha vida de leitora. De Victor Hugo em diante passei a apreciar a literatura "de adultos" e, agora sim, tomei coragem para atacar a estante de livros da minha avó. Foi lá que conheci preciosidades como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, leitura obrigatória para quem quer ler um clássico atual [e dá-lhe Pound!]. Também Germinal, de Emile Zola me deixou marcas fundas no espírito. Esses livros fizeram verdadeiras cirurgias nas lentes com que eu vivia a linguagem. E foi assim que passei a viver "na" linguagem. Grande Sertão: veredas me deixou apaixonada. Chorei nas últimas três páginas do volume não porque Diadorim morria, mas porque o livro estava se acabando, e, com ele, minha extrema e alucinante experiência estética. O orgulho de saber que era mineira, como João G. Rosa e a alegria de saber que alguém podia fazer da linguagem uma viagem infinita. Travessia. Depois dele, Cem anos de solidão me fez ter delírios de prazer. E outros volumes que posso citar como formadores incontestes de minha história de leitora e amante da literatura: Vidas secas (Graciliano Ramos), Agosto (Rubem Fonseca), O amor nos tempos do cólera (Gabriel García Márquez). Curioso que esta estante ainda conte apenas com livros de prosa. E digo isso porque a poesia me foi ainda muito mais importante. Jamais me esquecerei do prazer que certos poemas me causavam e da dorzinha boa que eu sentia no osso externo (aqui no meio do peito) quando lia algo de que gostava. Manuel Bandeira me deixava soturna. Ana Cristina César não me dizia muito, mas certamente foi ela quem me ensinou que poesia e poema são coisas diferentes e que eu podia ser poeta mesmo quando não gostava de métrica e rima. Mas nada se compara ao dia em que li Paulo Leminski pela primeira vez. Numa apostila do segundo grau, dei de cara com um poema: "Acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido". Pirei. Ensandeci. Era ele o cara que eu acompanharia por alguns anos ainda e eram dele os livros que eu procuraria obsessivamente pelas livrarias da capital mineira. Leminski não apenas dividiu as águas do que eu entendia como poesia até ali como também definiu, à sua maneira de samurai, com muita síntese e muita delicadeza, meus rumos como escritora de poemas. Foi por meio do cachorro louco que eu atingi a órbita dos poemas que escrevo até hoje. Distraídos venceremos e La vie en close (Paulo Leminski) são imprescindíveis numa estante. Livros pra serem consultados que nem horóscopo: todos os dias. E seguidos como poesia, vaso de rosa. Poesia pau-brasil (Oswald de Andrade) é histórico. Estrela da vida inteira, do Manuel Bandeira, é antológico. E, na atualidade, a portuguesa Adília Lopes precisa fazer parte da seleção. Mulher, quarentona, virgem e delicada como uma lagarta verde. Não posso me esquecer de citar as cantigas medievais, as antologias de poesia dos trovadores, que eu lia em voz alta, como deve ser, andando de um lado para outro do quarto: "no mundo non me sei parelha/ mentre me for como me vai/ e cá já moiro por vós/ e ai!". Ah, Paio Soares Taveirós, também "moiro" por você! Conto enquanto eles cantam 'parabéns' lá fora, com todas aquelas gracinhas de 'com quem será...', minha visão fica escassa dentro da sala bege. quem me dera uma revolução separatista. quem sabe assim meus olhos conseguissem exergar além das divisórias. eles cantam para alguma moça recém-noiva. parece-me que ela é clara, baixa, estudante. alia-se a ela uma amiga, e esta tem um olhar entristecido recentemente. penteio meus cabelos todas as manhãs, e tenho uma sensação esquisita quando sinto que os fios se soltam. voam com qualquer vento. escovo os dentes com pouco cuidado. meus olhos ficam bons logo. saio para a rua. dou aulas pra jovens belíssimos que me parecem sempre prestes a decolar. hoje me perguntaram se meu poeta preferido é junkie. se eu dormi de mal-jeito. se costumo usar sutiã bege. se tinha apelido gracioso quando era criança. e eu disse que não. que meu apelido era Zorro. e que eu adorava. Nota do Editor Ana Elisa Ribeiro é autora de Poesinha (1997) e Perversa (2002), editora do site Patife e redatora do blog Estante de livros on-line. Ana Elisa Ribeiro |
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