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Quarta-feira, 15/10/2003
Os Dez Grandes Livros
Jardel Dias Cavalcanti

A idéia de selecionar um grupo de dez livros que têm fundamental importância para mim é interessante, pois me faz recordar os momentos mais preciosos da minha vida, o tempo em que passei ao lado de gênios criadores em detrimento de perder tempo com as pessoas sem a mínima profundidade que me rodeavam. Claro que felizmente, para um leitor ávido como eu, mais de uma centena de livros e autores foram importantes. Mas, se me pedem apenas dez, tentarei escolhê-los e apresentá-los no texto que se segue.

Embora eu seja formado em história, nenhum historiador conseguiu me cativar tanto quanto os escritores de romance, de poesia e de filosofia. Eu sempre digo aos meus amigos que a história é apenas a superfície do mar da vida e que a literatura (as artes em geral) é o próprio oceano profundo.

O primeiro livro que me marcou de forma definitiva foi Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Não apenas pelo conteúdo do livro, que me interessou muito, mas pela impactante descoberta de que "a literatura é mais quente do que a vida". Perceber pela primeira vez que a vida que fluía dentro das letras era mais interessante do que a dos personagens humanos que circulavam à minha volta produziu em mim uma angústia meio desesperadora. Ao mesmo tempo me despertou para o desejo de descobrir outros livros, já que eu sabia, a partir daquele primeiro contato, que só na literatura encontraria idéias e pessoas vivendo situações mais sublimes do que as do mundo ordinário.

O segundo livro que me deixou perturbado e encantado ao mesmo tempo foi Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Além de ter virtualmente experimentado o sentimento e a idéia do suicídio (e trazer para dentro de mim essa possibilidade), encontrei nesse livro a poética descrição dos sentimentos amorosos profundos como nunca havia visto até então e do qual, creio, não encontrei ainda intensidade semelhante em nenhum outro lugar. De Goethe eu viria a venerar também seu Fausto.

Outro livro me marcaria para sempre foi Por que não sou Cristão, de Bertrand Russel. Logo nas primeiras páginas encontrei a frase que abalaria minhas crendices infantis, me fazendo rever tudo o que aprendi a acreditar por ter nascido numa família católica: "Não só o cristianismo é uma religião falsa, mas todas as religiões são falsas". O meu ateísmo nasceu aí e minha descrença na existência de Deus ou na vida após a morte se fortificou com leituras posteriores de Nietzsche, Freud/Wilhelm Reich, Marx e tantos outros. O rompimento com a idéia infantil da crença num possível protetor-vigia invisível, o papai-do-céu, é estimulante, nos fazendo pensar todas as situações da vida com a própria cabeça - mesmo que nos sintamos órfãos do cosmos.

Outro autor que me marcaria: Franz Kafka. Todas as suas obras são perturbadoras, mas se tenho que escolher uma, escolho A Metamorfose. É uma das novelas mais impressionantes que li na vida e que me deu a certeza de que o sistema social criado pelo ser humano nos reduz, sem escapatória para ninguém, em insetos tratados, evidentemente, como o personagem divertidíssimo criado por Kafka: Gregor Samsa. Agora sempre que olho para os seres humanos à minha frente me divirto muito vendo-os moverem-se pela vida, no seu desespero por manterem-se vivos, como algum tipo de inseto kafkiano- mas claro, alguns sempre causam mais asco que outros porque uns sempre vão feder mais que os outros dado seu estado de degradação.

Posterior a Kafka, descobri o romance Crime e Castigo, do escritor russo Dostoievsky. Além de me fazer mergulhar numa maravilhosa e tenebrosa realidade sombria, pude experimentar virtualmente a idéia do assassinato. Agora, depois da leitura de Dostoievsky, vivo com a impressão de que já matei alguém, de que passo pela existência trazendo comigo uma das mais estranhas e perturbadoras experiências que o ser humano pode ter: a de ter assassinado outro ser humano.

Mais tarde, depois de ler muito Balzac, Flaubert, Stendhal, Victor Hugo, Merrimé, Zola, Allan Poe, descobri a poesia francesa de Rimbaud (com sua obra Uma Seção no Inferno) e o poeta que mais admiro: Charles Baudelaire. Seu livro As Flores do Mal sempre me encantaram e não sei dizer porque. Li as interpretações de Walter Benjamim sobre o poeta e, ao contrário dos meus colegas que leram Benjamim sem nunca terem se dado o trabalho de ler Baudelaire, as achei extremamente limitadas. Até hoje leio e releio os poemas de Baudelaire, guiado unicamente pelo prazer sensual que me causam.

Quando fazia graduação, enquanto meus amigos ficavam lendo Che Guevara, Lênin e os tediosos historiadores, me dei ao luxo de mergulhar nos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Esta viagem é única, intraduzível em palavras, dado o grau de riqueza em pensamentos, sentimentos, universos humanos e artísticos que a obra de Proust revela. Na época do mestrado refiz a viagem, que me causou mais encantamento ainda, me oferecendo mais descobertas, mais emoções e, principalmente, ampliou ainda mais minha paixão pela literatura. Creio que muito de minha educação sentimental, no que há de mais vivificador e decepcionante em relação à crença no amor e nas relações humanas, se deve a este livro. A cada cinco anos, creio, farei a releitura desta obra.

Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce, me revelou o processo que vai da decepção pelo mundo à crença de que o único valor que realmente deve ser levado em conta na vida é o da criação artística.

De Thomas Mann não posso falar apenas de um único livro já que A Montanha Mágica, Morte em Veneza e Dr. Fausto me marcaram na mesma medida. A poderosa construção dos personagens e dos mundos nos quais vivem são a marca do que se pode chamar de grande obra de arte. Mann é uma espécie de Balzac do século XX, só que mais poderoso.

No momento estou mergulhado em O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Uma leitura obrigatória para entendermos, afinal, no que se transformou o homem criado pelo século XX e que vai se arrastando pelo século XXI: um zé-ninguém, orgulhoso de seu poder, de sua ganância, de sua riqueza, de seu egoísmo, de sua hipocrisia, de sua obsessão por dinheiro e prestígio - apesar de não ter qualidade alguma, de não ser, enquanto ser humano, mais que um verme podre egoísta e ignorante.

Há mais de dez livros nesta lista. Como disse acima, ela poderia se expandir. Mas já basta por hora. De uma coisa estou certo, o encontro com estes livros me marcaram mais do que o encontro com os homens.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 15/10/2003

 

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