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Quarta-feira, 29/10/2003 Nota Bene Alessandro Silva A exposição de arte do artista eslavo Samson Flexor também prova que os níveis de aceitação do termo “arte” caíram muito. Não se trata de questionar o cunho geométrico de sua arte. Mas sabemos que debaixo de cada tela ali presente, seja sua representação abstrata ou figurativa, há um laivo de amadorismo, de uma arte simpática, de um tipo de arte que, portanto, busca granjear-nos para ser aceita. Picasso: o belo é para os amadores. Acredito que essa degeneração dos padrões referenciais da arte deva-se a dois fatos: a) A palavra é muito ambígua; b) Há desconhecimento da natureza da arte. Exalta-se demasiado o artista pelo conjunto de sua obra ( e a tal ponto que depois de vinte anos de prática, você pode ter praticado a arte mais deslavada e cara de pau em honra de sua época ou de teu país cujo governo sequer te deu oportunidade de aprender uma língua estrangeira que terá o bom senso e o reconhecimento público a seu lado ). E tudo que arte autêntica não é é bom senso e reconhecimento público. Não é à toa que Alfred Jarry ( de quem Picasso herdou um dos revólveres ) ao menor riscado mandava bala pro alto; não é destituído do fardo que Breton, o líder da vanguarda surrealista, alardeava aos quatro ventos que o ato mais livre era simplesmente mandar bala sobre os pedestres. Arte não é flor que se cheire. Por isso mesmo que a primeira pessoa de quem desconfiaremos quando formos chamados a separar o joio do trigo, os autênticos dos falsos, identificaremos estes aos artistas que não zombam de seus mestres — por que não compreenderam sua natureza malévola e gatuna. Depois de passar por Paris e por Genebra, o senhor Samson concluiu que sua arte devia honrar o racional. E a honrou em seu mais alto grau praticando-a como um instrumento religiosamente matemático, ou seja, em sua forma geométrica. A sua assepsia deriva do seguinte: ele está preocupado em organizar o mundo; enquanto quem entende a verdadeira natureza da arte, entende que o artista tem a obrigação de desorganizar o mundo e destruir a beleza que o cerca. Por quê? Por que a vida é assim. Porque, en passant lembrando Nietzsche, o racionalismo e a ordem nos torna medrosos. Não há teoria que racionalize a espiral de um búzio e no entanto este contém a força inteira das ondas. A arte ruim não tem força; a arte ruim organiza; o senhor Samson Flexor é um artista ruim. A arte autêntica explica-se por si: é de nervos e tensão. A tal ponto que nos perguntamos: seria a identificação de caras como Picasso, Pound ou Hemingway com as touradas e com o boxe apenas coincidência? Urinóis, peças de madeira, vídeos, instalações, acessórios e bugigangas: efemerités. A arte conceitual, que é a forma paroxística do racionalismo, da domesticação dos sentidos, da racionalização frente a coisas que não se deixam racionalizar, que é a forma violenta do medo acuado é um tipo de arte que não pode se sustentar senão por alguns anos, porque é uma arte que se explica, é uma arte sem coragem ( a tragédia grega passou ao controle sutil do Estado assim que os coros em sua expressão mais poderosamente dionisíaca, em sua voz profética e titânica, decaiu em “tentativas de explicar” a sorte feroz dos mortais.) A verdadeira arte é aquela que não tenta justificar o mau, que não encontra catarse na prisão dos assassinos: a arte autêntica é terrível. Arte de circunstância? Beat generation. O que puderam fazer de mais nobre que não descartar a cartilha crítica de T.S. Eliot, portanto agindo sob a sombra de um mestre? Quem são hoje Allen Ginsberg, Bukowski ou Jack Kerouac diante de Wallace Stevens ou diante de Hart Crane? Abortos degenerados. Até mesmo um poeta moralista como W.H. Auden irá perdurar e isso porque nunca se preocupou com efemérites: do interior de seus sonetos ecoa a voz de Shakespeare. Os artistas não deveriam ser divididos entre os que fazem sua obra e deixam que elas falem por si mesmas e os que fazem algo e tentam justificá-lo por meio de teorias; deveriam ser divididos entre homens e ratos. É extremamente salutar para a humanidade que os artistas retornem a Cézanne. Porque — e essa é uma qualidade de todos os grandes talentos franceses — sua sinceridade no infortúnio é assombrosa. Em a “Dúvida de Cézanne” Merleau-Ponty torna patente a vida de um homem excessivamente tímido e atormentado. Ser atormentado e tímido era condição sine qua nom para se ser Cézanne. Intempestividade e timidez são características de seu estilo, sem os quais, sem sua sinceridade no estilo, não há autenticidade, não existe Cezanné. As dúvidas e a natureza violenta do ser humano são exploradas ad nauseam por Francis Bacon; sua patogenia o levava a aceitar a destruição e a natureza de cupim do ser humano no seguinte grau: “gostaria de ter uma relação com um outro pintor como a de T.S. Eliot com Ezra Pound; que houvesse crítica e até mesmo destrutiva à minha arte”. Mas o que acontece com esses nossos insetos metidos a artistas? Porque não podem se desgarrar para uma arte autêntica e sincera? E nos vêem com esse papo de que brasileiro é criativo? Só se for para pedir esmola no farol. Criatividade sem nobreza, sem sinceridade, é como bunda de prostituta; beleza sem substância. É uma pena que ao artista caiba passar fome e manter-se sob o chicote de um certo gosto oficial que é uma espécie de opinião democrática: a democracia faz mal ao caráter; a democracia aniquila o individual e, por extensão, o “genial”. O bom gosto diz a que veio: tudo muito bem asseado, tudo muito bem decorativo e brilhante, com uma visibilidade quase angelical da matéria, permeado pela influência de todas as micro-idéias possíveis e aceitáveis e, é claro, pela política. W.B. Yeats solicitado em época de guerra não deu sequer três versos à política; somente um imbecil para acreditar que um artista que se proclama filiado a um certo partido não está usando essa condição para se promover; somente uma crassa ingenuidade para acreditar que a arte de Brecht fosse mais do que mote para discussões, que sua pessoa tinha reais intenções éticas. Outrora visitei a exposição Francis Bacon e saí com vontade de vomitar. A mostra foi em São Paulo, mas em São Paulo nós temos medo de dizer que nossa vida é cheia de tédio. Em São Paulo, na “Casa das Rosas”, onde outrora se deu uma mostra dos “nossos” artistas em homenagem ao povo mexicano, uma homenagem tão rasteira que saí envergonhado. Lá estavam obras de gente como Siron franco e, chegando ao extremo, Belchior! ( Aquele que, até ontem, sabe-se ou imagina-se, que limitava-se a sua viola ) cuja chef d’ouvre jazia sob este título verborrágico: “porque os colecionadores pagam tão caro por isso?”. Belchior, você quer se divertir? Então vá se divertir no inferno. Artista é quem tem ataque epiléptico no meio da calçada e depois zomba de suas convulsões, porque devemos dormir com essa: arte é tudo aquilo que não quer ser arte, que não quer, portanto, ter um nome, que não quer ser reconhecida, tudo que é estranho e destituído de sentido, tudo aquilo que é o contrário do que é hoje. Marcel Duchamp? Aquele que tem um nome? Marcel Duchamp está morto. Alessandro Silva |
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