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Quinta-feira, 12/7/2001
Road Warrior
Juliano Maesano

Estradas. Nunca fui um fanático pela vida nelas e as aventuras que elas trazem, mas um dia tive a oportunidade de ser um viajante solitário. Eu e o asfalto, mais ninguém. Não havia nada entre nós, além de um velho Isuzu branco, daqueles tipo Saveiro, com caçamba fechada. Bem, vamos ao começo da estória...

Era novembro... Calor? Não, muito frio, se você estivesse no estado de Indiana, no meio-oeste dos Estados Unidos. Estava eu a findar meu trabalho como Segundo Assistente de Direção num longa-metragem semi-independente quando fui cogitado a ser o felizardo que levaria o carro da produção até Los Angeles. De livre e espontânea vontade aceitei, desde que tivesse a companhia de outro membro da equipe, já que um brasileiro poderia encontrar muitos problemas pilotando um carro que não era seu, cheio de equipamentos eletrônicos, com um visto de turista...

A semana passou e meu parceiro de viagem recebeu um chamado urgente, partindo assim de avião. A escolha foi-me oferecida: seguir sozinho ou deixar para outro. Aceitei e fiz meus planos. Seriam 2.395 milhas (3.854 km), 42 horas seguidas e 35 minutos de direção, 14 horas por dia em 3 dias, mas tinha o tempo que quisesse. Tracei o cronograma, peguei meu velho mapa rodoviário Randy McNally's do México, EUA e Canadá e fui dormir.

Seguindo meu plano, no dia anterior carregamos o carro com TVs, vídeos, luminárias, computadores, fax e outras tralhas, embalamos tudo, jogamos minhas duas malas pessoais e era isso. Beijos e abraços a todos, nos veríamos em 5 ou 6 dias. Parti para a grande Twelve Mile do meu coração, cidade de 467 habitantes onde morei muito tempo. Ali pernoitei na casa da minha família. Mais beijos e abraços, voltaria em um ano, quem sabe... pendurei a roupa antes separada e armei o despertador. Nunca fui tão organizado...

Bip, bip, bip... acordo milagrosamente com um sorriso, sem socar o despertador ou xingar alguém... 04:00...olho pra fora, é noite na floresta ainda branca pela neve que passou há uma semana. Como foi duro filmar nos milharais, nas madrugadas geladas... Levanto e faço meu ritual de partida: abraço e beijo a cabeça do Moe, um cervo pendurado na parede, obra de meu irmão, que há anos o acertou com uma flecha (Moe foi o nome dado por meu amigo Chrisinho, quando esteve lá comigo). Sei que voltarei para abraçá-lo de novo, ou assim espero.

Coloco a roupa e saio sem barulho, sem os habituais cookies, panquecas ou bacon. Nem um pio na escuridão. Se fosse verão, ouviria-se grilos, insetos e veria-se vagalumes. Nesse frio, o máximo era topar com um cervo ou ouvir um coyote. Entro no carro, se é que pode-se chamar essa lata velha de carro, e saio de ré sem dar a partida, ainda para não despertar ninguém. Ao sair da driveway, acendo os faróis e mando a chave... agora não tem volta.

Sigo pelo velho caminho. Aproveito o momento em que posso reconhecer cruzamentos, estradas, fazendas e curvas... em breve, tudo será a primeira vez. Saio pela Estrada Estadual IN-16 e me despeço dos 467 habitantes, agora já estou na Federal US-31, passando pela parada de caminhões em Peru, rumo a Indianapolis. Quantos patty-melts já não comi ali, ao lado dos "barbas"?

Passo pela Grissom Air Force Base e os meus conhecidos Thunderbolts, quando entro numa Indianapolis ainda escura, faço o loop 465 que circula a cidade e agora penso: "Deus do céu, quando vão acabar com esse RodoAnel aqui em São Paulo?". Sigo até a saída para a I-70, sabendo que daqui pra frente tudo será novo.

Ainda no loop, passo pelas placas de sinalização do Indianapolis Motor Speedway e me lembro da corrida que lá assiti na época áurea das 500 milhas. Vi o Emerson, A.J. Foyt e Rick Mears, pretendo voltar. Entro na I-70 a caminho de St. Louis. Até agora enfrentei um tráfego decente, bastante movimento.

Mais meia hora e cruzo o limite para Missouri, chegando à querida St. Louis. Nunca estive antes lá e essa passagem só me durou 20 minutos. Entrei na cidade chuvosa disposto a dar um "rolê", mas prometi voltar e só fui ver seu famoso Gateway Arch. Click, click. Duas fotos e de volta às estradas.

Ainda era cedo e nenhuma parada. Será que conseguiria seguir meu plano? De Twelve Mile a Dallas, no Texas, numa tacada? Paro num posto e telefono para minha amiga Lynn em Dallas ajeitando os últimos acertos. Pelas minhas contas, poderia chegar lá pelas nove ou dez da noite. Passaria dois dias com ela.

Na verdade escolhi esse caminho, um pouco mais comprido até a Califórnia, pois queria visitar a Lynn, conhecer Dallas e, a principal razão: evitar o caminho pelas Rochosas em Denver, Colorado, onde no inverno poderia pegar sérios apuros em estradas cobertas de neve. Como pouco dirigi em condições com neve, resolvi "ir por baixo."

Ainda entre St. Louis e Dallas, resolvo dar minha tradicional parada num posto. A parada ficou tradicional aqui, pois ela sempre incluía encher o tanque e esvaziar a bexiga, nem um minuto a mais ou a menos. Mas como eram umas duas da tarde, aliei minha parada com o almoço e escolhi um posto conjugado com uma loja da rede White Castle. Tinha ouvido tanto dos sliders que tinha que experimentá-los. São os sanduíches de hambúrguer dessa rede que têm um quarto do tamanho de um sanduíche comum. São pequenas partes de pão, ensebadas numa carne pequena e oleosa, com ou sem queijo. Chamados de sliders pois deslizam goela abaixo.

Aprovei os sliders e segui viagem. Finalmente encontro uma rodovia federal onde o novo limite é de 80 milhas por hora. Uma alegria para meu planejamento, poder pilotar a 130 quilômetros por hora e não ser parado.

De lá ao Texas as horas passam. Ao chegar no sul, começo a notar mudanças na vegetação e construções. Passo por rolos de feno nos campos vazios e pelas bombas de petróleo, características da região. Notem que viajo só na companhia de minha maleta fotográfica no banco da frente, dirigindo com uma mão e batendo fotos com a outra, muitas vezes sem nem olhar para frente, estando mais concentrado em olhar para o lado, pela lente da câmera.

Ao chegar perto de Dallas pego o seu famoso loop 635, que circula toda a cidade, dando acesso a outras estradas da região. Me volta o pensamento:"Poxa, será que acabam o RodoAnel em São Paulo comigo ainda vivo?" Me lembro do meu primo Christian, que tinha me alertado sobre a velocidade que os texanos desenvolvem pelo loop. Fui para a fileira da direita, a mais lenta, e mesmo assim tinha que estar a umas 65 milhas por hora se não quisesse ser atropelado por um texano doido.

Após muita procura chego ao subúrbio de Mesquite, onde Lynn mora. Estaciono o "branquelo" numa vaga próxima e tranco ele inteiro, pois ele só sairia dali a dois dias, comigo dentro, de preferência. Toco a campainha num dos apartamentos num segundo andar do condomínio e entro. Uma zona. Nossa, a Lynn é a primeira mulher que é zoeira como eu. Beijos, abraços e conversa até tarde. Deito no sofá. Zzzzzz.... as vezes acordo no meio da noite:"Puxa, de Indiana ao Texas numa balada.... de cima a baixo.... que ótimo!"

Nossos dias em Dallas foram ótimos. Lynn havia se preparado e tirado umas férias na época. Visitamos o local em que JFK foi baleado, fomos a ótima cidade country vizinha Fort Worth, nos bares e boates locais dos cowboys; pegamos, em Dallas, uma ótima sessão de cinema no Granada, onde só têm mesas e cadeiras, e você paga o ingresso pro filme e inclue-se um jantar com garçonetes servindo pizza e cerveja à vontade, fomos aos museus locais, IMAX, e ao ótimo bairro de Deep Ellum, onde rolam os bares com bandas ao vivo, muito rock, piercing, tattoo e cervejas...

Depois de muito passear, chega a hora da partida. Pensei bem se não devia ficar mais uns dias, mas tinha que partir na manhã seguinte se quisesse chegar em L.A. em dois dias, no dia do aniversário de Megan, minha amiga que iria me hospedar no próximo mês. Pra quem gosta de seriados, Megan é uma atriz amiga minha, que faz o papel da Karen, no seriado Will & Grace, que passa no Sony Entertainment Television. Bom, tudo resolvido, vamos dormir.

Após ter o mapa estudado, parto pela manhã fria. Segundo meus planos, poderia conseguir em um dia todo chegar a El Paso, uma cidade ainda no fim do oeste do Texas. Poxa, se atravessei vários estados na primeira fase da viagem, me parecia estranho guiar um dia inteiro e ainda ficar no Texas. Será que eu não conseguiria chegar ao Novo México a tempo de dormir em Roswell? Quem sabe não passeio por lá e vejo uns ETs? Segui o dia incerto... resolveria na hora, dependendo de quão tarde adentrasse El Paso.

Esse dia sim, foi bom. Já tinha a experiência com o carro e as estradas... e meu controle era maior. Já pensava em milhas e galões, estava pronto para ser um "guerreiro das estradas." Foi toda essa confiança que me rendeu a primeira multa. Uma parada rápida, o guarda "canetou" e segui em frente... teria que enviar o cheque pelo correio, se não quisesse ter meu nome queimado pelo Texas.

Ainda a caminho de El Paso, me lembro do Chevy Chase em Férias Frustradas, ao emparelhar com uma loirinha num Mitsubishi Eclipse vermelho. Estrada vazia, eu, miha lata velha, a loirinha e o Mitsubishi. Quando ela me olha e ri.... Com o Chevy Chase na cabeça retribuo o sorriso e finjo cantar uma música do rádio, que estava desligado... Ela continua rindo e eu acelero... passo um pouco e reduzo, fazendo graça. Depois de trocar as posições umas três vezes, ela dá uma de gostosa e acelera mais forte, passando por mim e um jipe cinza na frente. Passo o jipe e a loira, e acelero um pouco mais, mas sem passar o limite. Ela exagera e passa gargalhando, fazendo graça.... o jipe de antenas grossas e estranhas libera uma sirene não-sei-de-onde e encosta a gatinha. Um carro à paisana...

Lá se foi minha aventura sexual no Texas, passo por ela parada no acostamento enquanto o oficial abre seu jipe... ela nem me olha. "Seguir viagem", como futuramente diria o execrado Gessinger em sua música... foi o que fiz, desolado.

Já era o rei da estrada. Segui tirando fotos de cada cacto que passava, trens emparelhados e vilarejos com suas caixas d'água. Entro em El Paso já pelas nove da noite, certo que dali não passaria essa noite. A cidade me surpreende. Uma metrópole cercada ao sul por cercas, já que era, para minha ignorância, uma das fronteiras diretas com o México. Sendo assim, o espanhol reinava nas placas e outdoors pela cidade.

Resolvo passar a cidade e escolher um hotel no extremo oeste, perto da saída para a estrada, podendo evitar um futuro atraso em faróis ou trânsito no dia seguinte. Penso: "como sou esperto, imagino tudo..."

Escolho um simpático hotel da rede Red Roof Inn que me parece movimentado e de bom nível. Tiro tudo de maior valor do carro, paro na frente da recepção e subo até meu quarto. Escolhi o mais barato do local, já que não precisava de luxo no momento. Depois de um banho rápido, circulo a procura de um restaurante amigável e noto um próximo Denny's, rede que adoro e sempre aberta 24 horas. Como algo leve, acompanhado das minhas tradicionais mozzarella sticks, palitos de queijo à milanesa.

Na saída do Denny's vejo que estou vizinho à uma casa de strippers, então penso em matar um tempo. Entro rapidamente e escuto as regras: não há álcool e não se pode tocar. Poxa, no Brasil é melhor... penso no Madureira, velho amigo do antigo centro de São Paulo. Passo meia hora por ali, notando uma ou outra gatinha de peitos de fora e gastando notas de um dólar com elas. A imensa maioria das "meninas" pareciam ser fugitivas que pularam a cerca da fronteira, só sabendo falar thank you em inglês.

Sigo pra cama, sozinho, e repito o ritual do despertador às quatro da matina. Acelero pro Novo México, com o sol nas costas. Lá pelas onze da manhã, após ser quase levado pelo vento no alto de uma colina onde parei para encher o tanque e esvaziar o joelho, gasto mais uns rolos de filme imaginando ver índios descendo dentre as rochas. Que vista, que maravilha.

Abro um espaço para dizer que sempre me irritei com quem diz que não há maravilhas naturais como no Brasil. Mentira deslavada. Não sou o maior conhecedor, mas já tive oportunidades de notar que não é bem assim. Nos EUA ou na Suécia, no México, Inglaterra ou Canadá e em muitos outros lugares já testemunhei paisagens de cair o queixo. Digo isso pois não sou bairrista.

Bom, a caminho de L.A. em uma terceira fase, passaria por Phoenix, Arizona. Mas antes de lá chegar, ainda no Novo México, resolvo "cortar" umas horas e ignorar Roswell, que ficaria para a próxima oportunidade. Maldita idéia. Numa pequena estrada sou parado um pouco acima do permitido, dessa vez por uma mulher. Ela conversa, desconversa, olha o carro e pede os documentos.

Após notarem que eu não era americano, dirigia um carro que não era meu, cheio de papelão e eletrônicos na caçamba, e estava perto da fronteira com o México, a oficial e seu parceiro resolveram me chamar para a traseira da viatura...

Bendita idéia que tive em Indiana. Pedi ao Produtor Executivo do filme, dono do carro, para escrever um documento dizendo que eu estaria dirigindo seu carro a seu pedido até Los Angeles, coisa e tal, etc, etc... pois pensei:"se alguém achar que roubei o carro?"

Ligaram para o telefone de Mark, em L.A., número que estava no documento a meu pedido, e confirmaram minha estória, me livrando de um contratempo. Mesmo assim me perguntaram trinta vezes o que estava fazendo lá e o que carregava. Resolveram mexer nas coisas, com luvas e lanternas. Por fim, me perguntaram: "Tem certeza que não tem mais nada aí atrás? Armas, drogas, um cadáver?" Eu ri e eles me liberaram... com uma multinha apenas.

Daí deitei o cabelo na estrada, passei a jato por Phoenix e chego em L.A., pegando o maior tráfego da estória. Cinco horas na Santa Monica Freeway, pois um caminhão químico havia sido tombado. Mas deu pra chegar a tempo de devolver a lata velha na casa do chefe, pegar um caro táxi até o apartamento do Max Lima em Marina Del Rey, e partir em seu Boxster preto até a festa de Megan, para daí falar pros americanos como é bom no Brasil.

Eu e o Max naquela noite não parávamos de repetir:
"Brazil, man... The true land of the free."

Pra quem não entendeu:
"O Brasil, cara... A verdadeira terra da liberdade."


Juliano Maesano
São Paulo, 12/7/2001

 

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