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Terça-feira, 18/11/2003
Maria Rita: música em estado febril
Jardel Dias Cavalcanti

"Meu coração vai se entregar à tempestade"
(Maria Rita em "Santa chuva")

Com a morte de Elis Regina nos sobrou pouco em termos daquela força musical que brota de um repertório de qualidade, aliado à força pessoal do artista. Salvo alguns casos, mergulhamos no reino da música que alimenta o massificado e medíocre gosto comum. Como não havia possibilidade de comparação, fomos invadidos por uma pseudo-música que não nos tira de nós mesmos, que é incapaz de produzir pela força do seu estilo a mais forte, descontrolada e verdadeira emoção/fruição artística. Uma geração inteira viu-se, por isso, obrigada a ouvir uma música para menos que mediana - afinal, não havia parâmetro comparativo e a porcariada tomou conta das gravadoras/rádios/TVs. Mesmo grandes cantoras como Gal e Betânia, à força de não terem com quem competir, relaxaram muito no seu poder de impressionar (salve-se apenas Nana Caymi, integra até o fim, e a expressão vital e musical da jovem Cássia Eller).

Com o lançamento do seu primeiro CD e DVD, Maria Rita surge como um espectro para aterrorizar as cantoras de música popular brasileira. Podemos imaginar que todas (Marisa Monte, Zélia Duncan e outras) devem ter comprado o CD de Maria Rita e estão temerosamente se perguntando: "E agora, o que será de nós? Elis Regina voltou e estamos fadadas à categoria de medíocres cantorazinhas pasteurizadas pela indústria musical". Dotadas de uma pseudo-técnica e uma forma asséptica de aparição existencial/musical estas cantoras chinfrins estarão, a partir de agora, diminuídas no nosso juízo. Poderão e deverão ser avaliadas à luz de uma nova força musical, que surge do resgate da melhor tradição da nossa música e a partir de um repertório selecionado em função das necessidades das entranhas da cantora: dois elementos que marcam o estilo pessoal da grande Maria Rita.

A música bem comportada, racionalzinha, pasteurizada em seus sentidos patéticos e pré-determinados (para agradar a um público que consome música como mercadoria fácil e de terceira), está com seus dias contados. A força viva da emoção não calculada, o estilo pungente das variações vocais/emocionais e o acompanhamento de músicos criativos fazem do CD de Maria Rita uma luz no fim do túnel.

Sim, estamos nostálgicos de Elis Regina e seu sentido trágico da vida. Mas Maria Rita nos traz um dado novo, diferente da mãe. Uma alegria que vibra sem perder a força, uma tristeza que nos fala fundo do sublime em nós mesmos, um ritmo do qual não podemos escapar (tudo isso estava na mãe, mas, como dissemos, com uma tragicidade, talvez, maior).

Maria Rita canta de tal forma que exige de nós uma atenção, pode-se dizer, religiosa, que proporciona um mergulho total nos confins da emoção. Dado o envolvimento sincero da cantora com a poesia das letras, a sua capacidade de cruzar música e conteúdo cantado, a relação perfeita entre variações vocal e instrumental, sua música requer uma concentração que no final nos premia com um refinado sentido da verdadeira arte.

A aparição de Maria Rita acrescenta também um dado novo à música popular brasileira: os grandes compositores podem novamente se alegrar. Acabaram de ganhar uma intérprete à altura. Pense-se no caso de Milton Nascimento, que encontrou na voz de Elis uma parceira que só acrescentou à sua música. Agora Maria Rita se apresenta, indo ao seu encontro, trazendo para a música de Milton aquela força tão necessária ao cantor, uma espécie de força e fé que faz pensar na poderosa e sublime música religiosa colonial mineira.

É muito difícil traduzir em palavras uma experiência estética. Ser conduzido por uma voz, pelo sentido poético das letras e pelo timbre dos instrumentos a regiões obscuras de nós mesmos e, depois desta viagem, querer explicar o poder desta afetação parece um ato fadado ao fracasso.

O que interessa, para quem quiser ter uma prova do que se disse acima, é poder colocar o CD de Maria Rita para tocar e depois ouvir o que usualmente ouvíamos. Uma coisa com certeza vai anular a outra. Nós sabemos o que acontece ao nosso gosto quando nos acostumamos a beber o melhor vinho, das melhores safras, e depois, voltamos a beber o pior vinho, das piores safras: parece que estamos bebendo vinagre.

Também podemos apreciar as imagens do show de Maria Rita em seu DVD. Como não ser levado às lágrimas depois de ver/ouvir Tristesse, de Milton, na interpretação da filha de Elis? Sua presença no DVD começa suave, quase valsante, para terminar tragicamente, como seria Elis, se estivesse ainda entre nós.

Estamos tendo o prazer de ver nascer uma cantora de grande brilho, raro diamante num mar de lama comercial. Quem resistirá ao seu brilho radiante? A música popular está renascendo... e nós também. Neste momento, cale-se o mundo, que apenas Maria Rita cante.

Gostaria de terminar com umas palavras de Debussy: O grande público se compraz em obras de mau gosto. A partir do momento em que são atraídos pelo medíocre, é porque eles mesmos são medíocres. Quanto às belas obras, elas se imporão por seus próprios meios; e não é o grande público que importa nesse assunto, pois ele não entende nada disso.

"Meu coração se cansou de falsidade"
(Maria Rita em "Santa chuva")

Para ir além








Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 18/11/2003

 

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